Segundo um antigo ditado popular, “o papel aceita qualquer coisa”. Em outras palavras, isso significa que, quando alguém pega uma caneta ou um lápis pode escrever o que bem quiser, por mais controverso ou incoerente que possa parecer.
Traduzindo esse clássico provérbio para os tempos atuais, podemos dizer que também “a internet aceita qualquer coisa”, pois basta acessar a rede mundial de computadores para que um indivíduo compartilhe, com extrema facilidade, teorias da conspiração, falsificações históricas ou exponha os aspectos mais obscuros da personalidade humana. Nesse sentido, não é por acaso que, nos últimos anos, o espaço virtual tem sido inundado por ideias “revisionistas”, que negam o golpe militar, a escravidão e o massacre de indígenas, entre outros fatos da história do Brasil.
Entre essas tentativas de “revisionismo histórico”, destaca-se o documentário “1964: O Brasil entre armas e livros”, dirigido por Felipe Varelim e Lucas Ferrugem, e que conta com depoimentos do astrólogo Olavo de Carvalho, do filósofo Luiz Felipe Pondé e do jornalista William Waack, entre outros nomes do pensamento conservador brasileiro. Para descrever a sensação que se tem ao assistir este documentário, podemos dizer que seria o mesmo que um alemão ter contato com uma produção que relativizasse as atrocidades cometidas pelos nazistas ou um sul-africano ter que se deparar com um vídeo que faça apologia ao Apartheid.
A primeira grande falsificação história presente em “1964: O Brasil entre armas e livros” diz respeito ao caráter do golpe militar. Embora todos os historiadores profissionais sérios qualifiquem o movimento de 31 de março/1º de abril de 1964 como “golpista”, pois depôs ilegitimamente o presidente João Goulart, o documentário utiliza o termo “Revolução de 1964”. Para tanto, os autores reconstroem o falacioso argumento de que havia a ameaça de implantação de uma ditadura comunista no Brasil (apoiada inclusive por Jango) que seria parte de um projeto global de revoluções marxistas capitaneado pela União Soviética. Fazendo uma analogia com os dias atuais, seria algo como acreditar no projeto da chamada União das Repúblicas Socialistas da América do Sul (URSAL), “denunciado” no ano passado pelo Cabo Dáciolo durante os debates televisivos entre presidenciáveis.
Não obstante, “1964: O Brasil entre armas e livros” também aponta que o golpe (ou “revolução”, segundo a concepção de seus idealizadores) teve amplo apoio popular, pois os brasileiros não queriam mais o governo “comunista” de João Goulart ou tampouco que o nosso país se transformasse em uma “nova Cuba”. No entanto, esse pseudo-argumento também é facilmente refutável, pois o que havia de fato na época era uma elite que não concordava com as políticas econômicas nacionalistas de Jango e uma classe média conservadora temerosa de que as chamadas “reformas de base” propostas pelo governo ameaçassem seus históricos privilégios ou pudessem promover a ascensão social dos estratos mais pobres da população. Desse modo, lembrando o conceito de “ideologia” presente na obra de Marx, o documentário constrói a narrativa de que os interesses de uma determinada classe social seriam as aspirações de toda a sociedade.
Aliás, a paranoia anti-esquerdista é a tônica de “1964: O Brasil entre armas e livros”. Sobre o contexto histórico no qual a Ditadura Militar está inserida – isto é, a chamada Guerra Fria, o conflito não declarado entre estadunidenses e soviéticos pela hegemonia global – o documentário propõe uma análise extremamente maniqueísta, apontando que havia, de um lado, o capitalismo, representado pela liberdade de mercado, democracia e valores cristãos; e, de outro lado, o totalitarismo socialista, disposto a promover a revolução do proletariado em todo o planeta, independentemente da vontade popular, e a destruir os pilares da civilização ocidental.
Já a construção de Brasília na segunda metade da década de 1950 (supostamente inspirada no livro “A Cidade Comunista Ideal”, escrito por dois arquitetos soviéticos) seria um sinal de “inclinação à esquerda” do governo brasileiro, pois a transferência da capital federal do Rio de Janeiro para o Planalto Central fazia parte de um “projeto comunista de poder”, idealizado por Juscelino Kubistchek, com a participação de comunistas como Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, que visava “retirar a política de perto da população” e “onde os políticos viveriam em uma redoma, como iluminados em um ‘olimpo’”.
Como não teria havido um golpe militar em 1964 (de acordo com o documentário), o regime político brasileiro só poderia ser classificado como uma ditadura a partir de 1968, com a promulgação do Ato Institucional nº 5 (AI 5). Todavia, mesmo reconhecendo o caráter ditatorial do regime, “1964: O Brasil entre armas e livros” busca, a todo custo, minimizar as atrocidades cometidas pelos militares. O próprio AI 5, inclusive, é interpretado mais como uma reação do governo brasileiro ao chamado “terrorismo de esquerda” do que propriamente como uma medida típica de regimes com características fascistóides.
Sendo assim, o verdadeiro terrorismo praticado durante a ditadura – o “terrorismo de Estado”, baseado em torturas, perseguições e execuções – é sumariamente negado, pois somente a esquerda poderia ser qualificada como “terrorista”. Para os autores do documentário, os poucos militantes esquerdistas que recorreram à luta armada (e não os militares golpistas que estavam no poder) representavam a principal ameaça para a democracia brasileira.
Ainda segundo o documentário, diante da impossibilidade de vencer os militares pelas “armas”, a esquerda se voltou para os “livros”, ou melhor dizendo, para o chamado “gramscismo”, isto é, a tentativa de, na impossibilidade de instaurar uma ditadura do proletariado, destruir todos os valores do capitalismo, da civilização ocidental, da religião cristã, da moral e da família; ocupando espaços-chave como escolas, universidades, instituições religiosas e meios de comunicação de massa, a fim de “pervertê-los e criar um novo modo de pensar”. Consequentemente, muitos brasileiros teriam sido conduzidos pela “hegemonia cultural” da esquerda, passando a raciocinar nos termos da “linguagem socialista” sem se dar conta.
Ora, trata-se de uma distorção grosseria do conceito de “hegemonia” presente na obra Antonio Gramsci, que significa, de uma maneira bem resumida, uma mudança de mentalidade coletiva que “acompanharia” a revolução que promoveria a socialização dos meios de produção, e não a sua “negação”, conforme aponta o documentário. Em resumo: a ideia de “gramscismo” apresentada em “1964: O Brasil entre armas e livros” é uma bobagem equivalente a acreditar na existência do chamado “marxismo cultural”, afirmar que o nazismo seria um movimento de extrema-esquerda ou dizer que a Terra é plana.
Segundo os idealizadores de “1964: O Brasil entre armas e livros”, a Constituição Federal de 1988 foi pautada pelas ideias de ex-guerrilheiros e intelectuais de esquerda, que teriam formulado uma Carta Magna extremamente nefasta, que garantiria a universalização de serviços sociais básicos como educação e saúde e, por outro lado, relativizaria o conceito de “propriedade privada”. Em outros termos, de acordo com esse ponto de vista, o governo deve existir, não para atender os anseios da população, mas exclusivamente para locupletar os grandes capitalistas. Ou seja, corresponde a típica representação do mantra da nova direita brasileira: “liberal na economia, conservador nos costumes”.
Em suma, o conteúdo apresentado por “1964: O Brasil entre armas e livros” parece ter saído diretamente de um grupo de WhatsApp cujos membros insistentemente compartilham Fake News, teorias da conspiração e pensamentos esdrúxulos. No entanto (o que é ainda pior), os produtores e os participantes do documentário se consideram cognitivamente capacitados para refutar autores consagrados, pesquisas sérias, documentos históricos e, sobretudo, fatos consumados.
Embora a internet seja provavelmente a maior invenção humana no tocante à liberdade de expressão, o mundo virtual também tem os seus efeitos colaterais, propiciando um terreno fértil para a divulgação em larga escala de falsificações históricas e desonestidades intelectuais. Num momento em que as ideias obscurantistas crescem vertiginosamente, adentrando em praticamente todos os âmbitos de nossa sociedade e, inclusive, podendo se concretizar como políticas de Estado; é de extrema importância denunciar a tentativa do documentário “1964: O Brasil entre armas e livros” de reescrever de uma maneira extremamente deturpada e tendenciosa uma das páginas mais infelizes de nossa história.
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Francisco Fernandes Ladeira é mestre em Geografia pela UFSJ e professor do PROEJA do IFES – Campus Vitória. Autor (em parceria com Vicente de Paula Leão) do livro A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas pedagógicas e imaginários discentes, publicado pela editora CRV.