TIM LOPES (1951-2002)
Luiz Roberto Guimarães da Costa Júnior (*)
[Excerto do artigo "Agosto de 54, uma releitura", publicado na edição n? 76 deste Observatório (5/10/99) ? veja remissão abaixo]
(…) O ano de 1954 foi um dos mais conturbados da história republicana brasileira. Em fevereiro, oitenta e dois coronéis, apoiados pelo então ministro da Guerra, general Ciro do Espírito Santo Cardoso, divulgaram manifesto criticando as greves dos trabalhadores e o custo de vida. Por um lado, o presidente demitiu o ministro e colocou, no Ministério da Guerra, o general Zenóbio da Costa, aceito sem restrições pelos militares por ter sido um dos comandantes da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Segunda Guerra Mundial. Por outro lado, o presidente teve que ceder, demitindo o ministro do Trabalho, João Goulart, por causa da proposta de aumento de 100% do salário mínimo. Em 1? de maio, nas comemorações do Dia do Trabalho, entretanto, o próprio presidente aumentou o salário mínimo em 100% (a inflação prevista era de 54%, o que geraria aumento real de 46% nos salários). Em seguida, foi divulgado um falso acordo secreto entre os governos populistas de Perón e Vargas, e isso deu origem à proposta de abertura de um processo de impeachment contra o presidente. Em 16 de junho, a Câmara dos Deputados recusou por ampla maioria a abertura do processo.
Ainda em maio ocorreu a morte do jornalista Nestor Moreira, do jornal A Noite, casado e pai de dois filhos. Ele foi violentamente espancado pelo policial Paulo Ribeiro Peixoto, vulgo "Coice de Mula", com ajuda de dois vigilantes e sob o olhar de um comissário da 2? DP. Após 11 dias agonizando, o jornalista morreu e foi enterrado em clima de consternação e revolta, em 23 de maio. Esse acontecimento comoveu a opinião pública e revoltou toda a imprensa, dadas as características do caso ? semelhanças com as práticas da SS nazista ou do Estado Novo do próprio Getúlio Vargas ?, em relação ao tratamento com a imprensa e com os opositores do regime (o livro Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, registra esta época). A revolta contra a impunidade, a corrupção generalizada e a violência, que dominava grande parte da opinião pública antes da democratização do país, aumentou após a queda de Vargas no final de 1945, e persistiu quando o ex-ditador foi eleito presidente democraticamente em 1950.
Começava o mês de agosto de 1954, as eleições legislativas federais e estaduais seriam dali a dois meses. O clima no país era tenso por causa da radicalização entre getulistas e antigetulistas. O jornalista Carlos Lacerda estava em campanha para deputado federal e usava seu jornal, Tribuna da Imprensa, para atacar o presidente. Este jornalista já havia sofrido duas agressões físicas (tratadas na época como atentados) por causa de sua moralizante campanha contra a corrupção. Em 1948, quando era vereador, no Rio de Janeiro, levara uma surra de várias pessoas quando saía da Rádio Mayrink Veiga. Carlos Lacerda acusou o então prefeito do Rio, general Ângelo Mendes de Morais, de mandante do atentado. Em 14 de maio de 1950, o coronel da Aeronáutica Guilherme Aloísio Teles Ribeiro trocou socos com Lacerda, à saída do elevador, no 10? andar do Edifício Albervânia, na Rua Toneleros n? 180, por causa das denúncias da Tribuna da Imprensa, que acusara o coronel de fazer negociatas com Artur Pires, presidente do Sesc.(…)
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Edmar Morel
[Excerto do livro Histórias de um repórter, de Edmar Morel, 290 pp., Editora Record, Rio de Janeiro, 1999]
(…) O repórter Nestor Moreira, de A Noite, em seu natural estado de embriaguez, teve uma discussão com um motorista de táxi. Ambos foram parar no 2? Distrito Policial, Copacabana. Horas depois, Nestor se internaria no Hospital Miguel Couto entre a vida e a morte. O que acontecera? Estava apurando o assunto na delegacia quando um preso me confidenciou: "Foi o Coice de Mula". Consegui penetrar no hospital e tive a sorte de encontrar Nestor Moreira num momento de lucidez. O moribundo confirmou. Estourava o escândalo, que ganhou todos os jornais. "Coice de Mula" era o sugestivo apelido do policial Paulo Peixoto, que agredira o jornalista a pontapés, causando grave hemorragia. Nestor Moreira morreu a 22 de maio em consequência dos ferimentos, causando comoção nacional. O enterro foi uma verdadeira consagração. Mais de duzentas mil pessoas acompanharam o cortejo. Compareceram ao sepultamento vários líderes oposicionistas, entre eles Carlos Lacerda. Aqui deixo falar Samuel Wainer (no seu livro de memórias Minha razão de viver, Editora Record, 1988):
"Lacerda estava vestido de preto dos pés à cabeça, aspecto solene, rosto compungido, ar sofredor. Era o retrato da revolta humana à violência cometida contra um humilde jornalista, vítima da arbitrariedade política. Quando vi a cena, senti-me enojado.
? Vou-me embora ? disse a Octávio Malta. ? Não aguento ver a cara desse corvo na minha frente.
Sempre que ocorria alguma morte interessante, lá estava Carlos Lacerda. Era um corvo. Nesse momento, o repórter Edmar Morel aproximou-se de mim em missão conciliatória.
? Samuel, esta hora é para se esquecer divergências. Venha dar a mão a Carlos ? sugeriu.
? Dar a mão à pqp! ? reagi. ? Como é que você, Morel, que é meu repórter, meu amigo, tem coragem de propor uma coisa dessas?"
Nesse momento surgia o apelido de "Corvo", que passaria a ser largamente usado pelos inimigos de Lacerda.
Quando eu estivera na delegacia para apurar a morte de Nestor Moreira (embora não fosse repórter de polícia), o que me impressionara fora a superlotação dos xadrezes. Contei ao Samuel e confessei do meu desinteresse pelo caso do Nestor Moreira, que ainda não havia falecido. Eu tinha um bom relacionamento com o então ministro da Justiça, Tancredo Neves, a quem pedi carta branca para entrar em qualquer hora do dia ou da noite nos xadrezes de polícia. Tancredo me concedeu a autorização.
O que vi e o Jáder Neves fotografou foram cenas monstruosas. Mais de mil presos espremidos apodrecendo nas masmorras policiais, amontoados como sardinhas em lata, vivendo numa promiscuidade imunda, misturando-se aos ratos, baratas e percevejos. Terrível, sob todos os aspectos, era a prisão das mulheres no distrito da Praça da República, muitas doentes, todas com sarnas e seminuas em face do calor sufocante.
Neste momento a situação financeira de Última Hora era péssima. O jornal, atingido e enfraquecido pela feroz campanha movida contra Vargas (tendo a frente Carlos Lacerda na Tribuna da Imprensa), não tinha dinheiro, sequer, para alugar um táxi. Fiz todo o trabalho no meu carrinho, um Fiat "pulga". Pela manhã, cheguei à redação e esperei que os filmes fossem revelados. Quem primeiro viu as fotos foi Nelson Werneck Sodré, que ficou estarrecido. Samuel tinha em mãos uma reportagem para abalar o Brasil. O resultado foi que Última Hora, que naqueles dias sombrios tinha a tiragem reduzida a mil exemplares, pulou com a denúncia para 330 mil. Isto foi no dia 20 de maio de 1954. A rotativa só parou às 18 horas. Todo o material foi apresentado de maneira sensacional, com minha assinatura e foto. A manchete e subtítulos, em letras garrafais, eram os seguintes:
"As catacumbas policiais"
"A cem metros da Avenida Rio Branco homens e mulheres apodrecem como gado humano!"
"Cenas que lembram monstruosidades dos campos de concentração"
As reportagens permaneceram na primeira página por uma semana e o assunto ganhou outros jornais, esvaziando em parte o noticiário em torno do caso Nestor Moreira. Ante a repercussão, começaram a chover discursos no Senado, na Câmara dos Deputado e na Câmara dos Vereadores. As autoridades tomaram providências de curto prazo, como a construção imediata de um galpão em Bangu com a capacidade para oitocentos presos, Foi criado o 2? Tribunal do Júri, para agilizar a situação dos detentos que aguardavam julgamento. Dezenas de prisioneiros foram removidos para a Ilha Grande e para delegacias localizadas na Zona Rural, onde havia mais espaço.
Não creio que uma denúncia tenha tido tão grande impacto quanto o cruciante problema da superlotação dos xadrezes. Uma tarde, Samuel foi chamado ao Palácio do Catete e ouviu de Getúlio Vargas: "A Tribuna da Imprensa não teria feito melhor…"
Samuel foi muito decente e não me demitiu, a despeito da insinuação de Getúlio.