Marco Antônio Coelho Filho
A lógica da orquestra sem regente, na qual todo mundo faz tudo igual e se acha diferente, irrita pela falta de inteligência e curiosidade frente ao conhecimento. Como é possível diversos veículos de comunicação discorrerem sempre, ou quase sempre, sobre os mesmos assuntos e da mesma forma? Refiro-me notadamente ao comportamento do telejornalismo brasileiro. Em seu perverso "jogo de espelhos", os jornalistas se copiam diariamente, repetindo um padrão estabelecido há 40 anos: todos respiram aliviados quando tudo, ao cair da noite, sai igualzinho em todas as telinhas.
Como notou com sagacidade o ensaista francês Alain Accardo, os jornalistas "agem de forma orquestrada sem necessidade de se orquestrarem; sua identidade de inspiração torna desnecessária a conspiração". Uma afirmação grave, pois pressupõe uma estreiteza profissional, para não dizer indigência intelectual. A padronização do que venha a ser "notícia", na verdade estabeleceu-se ao longo do tempo por meio de um acordo tácito entre o mercado e os jornalistas. Aos poucos, a história que vende – ou dá audiência – suplantou a que é importante para a sociedade e o cidadão (este último transformado em consumidor).
Para a própria sobrevivência dos jornalistas, noticiários mais bem produzidos e com um maior grau de reflexão foram substituídos pelo "show de imagens", pelo telejornalismo do espetáculo. Os telejornais passaram a representar "ritos de passagem" entre novelas e programas de entretenimento com elevados índices de audiência.
A balela da isenção ou da imparcialidade dos jornalistas perante a realidade ajudou ainda mais a nublar essa imensa operação orquestrada dos fatos, pela qual ninguém se declara responsável. "São apenas os fatos", dizem os jornalistas, quando na verdade o que mais se assiste são incontáveis histórias de destruição, sexo e emoção da dor. Histórias que dão audiência e vendem, antes de qualquer coisa.
Foi percebendo a necessidade de quebra da lógica dessa orquestra sem regente que a proposta do Telejornalismo público da TV Cultura passa a ser uma alternativa de informação para a sociedade. Como não existe jornalismo imparcial no Brasil, e em nenhuma parte do mundo, a emissora assumiu de maneira deliberadamente parcial sua vocação: o interesse público regido pela ética do cidadão. Decisão possível, tendo em vista a compreensão de que qualquer pauta jornalística é fruto de uma ação subjetiva, pois parte de um pressuposto editorial, de um viés ideológico, ou mesmo de um histórico de vida de quem a produz.
TV pública de fato, a emissora procura atender aos interesses do conjunto dos cidadãos com recursos governamentais, dirigidos e geridos pela representação organizada da sociedade civil , por meio de um Conselho Curador , representativo e independente. Como o objetivo da TV não é o lucro , o jornalismo não deve, por coerência, ser igual ao das outras, que buscam a conquista do mercado.
Romper o círculo
A bem da verdade, a TV Cultura já pratica jornalismo público em programas jornalísticos como o Roda Viva, Opinião Brasil, Conversa Afiada, Repórter Eco e no núcleo de documentários – que nos últimos dois anos produziu 70 títulos e ganhou prêmios nacionais e internacionais. Esses são espaços onde os assuntos de interesse da sociedade são esmiuçados, aprofundados, debatidos de forma plural, livre, com reconhecida liberdade. Mesmo quando um poderoso de plantão resolve entender "que o assunto não é pertinente" , a instituição consegue manter-se autônoma.
As dificuldades são múltiplas e complexas. Elas vão do esforço de transcender a superficialidade intrínseca do veículo à resistência em ceder ao apelo fácil do assistencialismo, consumado na intermediação de demandas populares em relação ao Poder Público. A isso se acrescenta a inflexibilidade quase reverente na produção da mercadoria chamada notícia. Para os jornalistas formados nas universidades brasileiras, é difícil contar um caso sem recorrer ao compêndio de clichês do telejornalismo americano.
Depois de muita luta do presidente da Fundação Padre Anchieta, Jorge da Cunha Lima, e de dois anos de conversas e workshops, definiu-se o temário e a abordagem ideais que traduzissem o novo conceito. As histórias públicas são aquelas que superam os interesses privados, mercadológicos e partidários. Histórias que digam respeito à vida (meio ambiente, ciência e tecnologia), ao desenvolvimento da cidadania (políticas públicas, prestação de serviço etc) e ao enriquecimento cultural dos brasileiros (divulgação e discussão das culturas de valor). O fetiche do "furo" cede lugar à cobertura regular, aprofundada, purgada do interesse espasmódico. Livre das amarras da estandardização, o jornalismo deve se voltar para o conhecimento e reengendrar as hoje esgarçadas relações com a universidade e fontes autônomas de saber.
À introdução da reflexão no noticiário correspondem inevitáveis mudanças de formato. As reportagens ficam mais longas, as edições mais elaboradas, o trabalho dos câmeras mais autoral e até a apresentação – a parte mais visível do modelo consagrado – sofre impacto sensível.
Essas experiências estão em curso. Em 14 de agosto a TV Cultura colocou no ar seu novo telejornalismo, dividido em vários programas em diferentes horários com diferentes categorias – às 13h30, o Matéria Pública; às 18h30, Diário Paulista; às 21h, Opinião Brasil; às 21h20, Metrópolis; às 21h40, Conversa Afiada e às 22h, o Jornal da Cultura.
É o começo de um processo de modificação que necessariamente será lento. Em virtude do círculo vicioso criado há quatro décadas, também o telespectador decodofica o telejornal com base em expedientes repetidos à exaustão. Ou seja: um amontoado de senhores engravatados falando verdades atrás de um balcão. Nesse sentido, a transformação precisa e deve ser feita em etapas.
Em síntese, somente uma emissora pública pode estimular a subversão de padrões tão solidamente fincados. Afinal, existe melhor maneira de reafirmar a independência do poder e do mercado?
(*) Diretor de Jornalismo da TV Cultura, São Paulo (SP)
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