Saturday, 28 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A canção de ninar da imprensa brasileira

GÊNOVA E O G-8

Cláudia Rodrigues (*)

Lamentável a cobertura da imprensa brasileira sobre a reunião de cúpula em Gênova. Quando se lêem os textos nos principais jornais ou se assistem às cenas pela televisão, fica-se com a impressão de que os jovens revoltados, vítimas de desemprego, com opinião formada, na carne, sobre o processo da ditadura da globalização, são bandidos. E que os homens dos carrões blindados são os mocinhos ofendidos da história.

Folha, Estadão, JB e Globo referem-se aos jovens como anarquistas de forma pejorativa. Os estudantes não são ouvidos, não há aspas para as pessoas comuns, mas há aspas para George Bush, que cinicamente profetiza ser a globalização um sinônimo de liberdade para os países pobres. Se não fosse trágico, era engraçado.

Entre vândalos com pedras nas mãos e a polícia, com o velho arsenal conhecido, de gás lacrimogêneo e armas potentes, o leitor, o cidadão comum que não quer guerra nem morte, que teme pelo futuro dos filhos, só tem uma escolha: fica com a polícia, defensora dos interesses dos políticos que, como sempre disseram, estão interessados em arranjar saídas para a miséria social e ambiental que assola o planeta. Eles juram que a desigualdade econômica vai ser atenuada, que medidas estão sendo tomadas, mas não há uma única atitude que se possa citar, só palavras.

Políticos baderneiros

O modelo econômico, falido do ponto de vista humano, é exatamente o mesmo do início do século passado, está intensificado, cada vez mais massacrante e só tem ampliado a miséria, as desigualdades e, por conseqüência, a criminalidade, tanto nos países ricos quanto nos pobres.

Os jovens de Gênova representam as feridas de seres humanos mutilados por uma economia perversa, mas não têm vez, não têm voz. Baderneiro não pode ser ouvido, atirar pedras é um ato condenável em primeira instância. Todos somos unânimes em dizer que a violência não é solução para problema algum. Mas onde nasce a violência? Quais são seus disfarces? Será mais violento perder a cabeça com um pedra na mão ou enrijecer o coração com dólares no mercado financeiro?

Quem pode punir ou matar, quem tem licença para agredir é a polícia, e ela não está a serviço da sociedade mas de interessados maiores. Ou menores, dependendo do ponto de vista.

As matérias que noticiaram a morte do estudante em Gênova e o encontro de cúpula esqueceram de escutar o outro lado, esqueceram de ponderar sobre a possibilidade de serem os políticos baderneiros de uma economia falida do ponto de vista humano. Esqueceram-se os coleguinhas que escreveram tais matérias de abordar que razões têm criaturas tão jovens para receber a pedradas "seus" representantes no mundo político.

Compromisso com os fatos

Ah, deve ser coisa de adolescentes, drogados, rebeldes sem causa. Temos que levar os leitores a crer nas palavras dos nossos representantes, eles não querem baderna nem mortes, eles sonham com um mundo melhor para os países pobres, eles estão lá suando seus colarinhos brancos para encontrar uma saída. Um dia eles descobrem como distribuir renda sem desconcentrá-la. Equação impossível do ponto de vista matemático. Mas eles estão tentando, a cada reunião dão um passo importante, dizem.

E nós, brasileiros, precisamos acreditar que os jovens de Gênova são mais baderneiros do que os nossos porque a Europa está regredindo, vivendo uma espécie de torpor, de Belle Époque ao revés. Nós precisamos acreditar que estamos pagando conta de luz mais alta porque é necessário economizar, que isso não tem nada a ver com globalização, com privatização, com altas concentrações de verbas para construção de hidrelétricas e termelétricas. Nós não devemos ponderar que a energia limpa é uma possibilidade em um país cheio de sol. Nós não podemos desconfiar que talvez os jovens anarquistas tenham razão em estar com tanta raiva. Mas essas razões, ainda que a imprensa não publique, existem e serão pautas para matérias, livros e filmes. Coisa para daqui a 20, 30 anos, é claro. Da mesma forma como hoje temos tanto material sobre as guerras, as revoluções que já se foram e que em suas épocas foram da mesma forma abafadas. Ai Salomão, porque foste dizer que nada havia de novo debaixo do Sol? Maldita profecia!

Não digo que a imprensa deva dar voz aos baderneiros, somente a eles. Além de não cumprir a imparcialidade jornalística, seria uma catástrofe nacional os jovens brasileiros identificando-se com os europeus, acordando do sono onírico da pós-ditadura militar, perplexos diante da ditadura empresarial e política. Mas daí a cair na parcialidade de proteger ainda mais os homens que mantêm o poder sobre toda uma sociedade mundial já é deboche da cara do leitor, do telespectador.

Que tal, em vez de matérias de capa para atrocidades do passado, só para variar, umas materiazinhas mais comprometidas com fatos da nossa realidade?

Guga ajuda

Coisa simples, como explicar a estranha relação entre EUA e Israel. Assim, de leve, dar uma explicadinha sobre quem ? como e por que ? coloca a lenha na fogueira dos ódios raciais. Só para sair um pouco desse tom judeus x palestinos indomáveis.

Na área econômica e social, a Folha, por exemplo, poderia dar um infográfico mostrando quanto cresceu a miséria desde que a globalização virou a rainha do momento político e econômico. Nada muito antigo, só uma pesquisa mínima, da queda do muro de Berlim até aqui.

Matérias assim não vão fazer a brasileirada acordar de vez. Afinal, o sono onírico é de puro prazer e Guga está garantindo as capas do sonho. O povo não vai sair aos tapas e pedradas pelas ruas; além de Guga ser campeão, toda semana existe a esperança de acordar milionário da megasena na segunda-feira.

Sei lá, melhor não arriscar, pessoal. Deixa o povo dormir. Pssssiu!

(*) Jornalista

    
    
                     

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