O VOTO E A TV
Sylvia Moretzsohn (*)
De todas as palavras empregadas para definir o traço distintivo da campanha eleitoral deste ano, talvez a mais significativa seja esta: maturidade. Tanto os partidos quanto a própria mídia teriam evoluído e deixado de lado a habitual exploração de escândalos e a montagem de armadilhas difamantes para dedicar-se à discussão séria e responsável dos grandes problemas nacionais. Uma demonstração de civismo e civilidade, nas palavras de William Bonner, antecipando o que seria o último debate dos presidenciáveis, antes do primeiro turno.
Já vai longe a memória do caso Proconsult, em 1982, e daquela famosa edição do debate entre Lula e Collor, que o Jornal Nacional levou ao ar em 1989, às vésperas da decisão das primeiras eleições diretas para presidente após a longa ditadura. Hoje, a diluição ideológica deixa a imprensa à vontade para cultivar a imagem de imparcialidade que lhe é tão cara, promovendo com especial sucesso o trabalho de ocultamento de produção de sentido inerente a qualquer discurso.
É o que permite à Globo avançar em propostas aparentemente inquestionáveis de defesa da “cidadania”, espalhadas em inúmeras reportagens e programas que valorizam iniciativas de voluntariado, às vezes patrocinadas pela própria empresa, não fosse ela mesma uma promotora especialmente ativa de tais projetos, como o “Criança Esperança” e o “Amigos da Escola”.
Fiquemos apenas com o exemplo que estabelece um vínculo mais claro com a política: a série de reportagens que o Jornal Nacional veiculou desde agosto até pouco antes da eleição. Partindo da justa compreensão de que a participação do eleitor não se esgota no momento do voto, a série foi apresentada explicitamente como “um espaço para ajudar” o público em sua escolha, procurando demonstrar a necessidade de participação sistemática na vida política. Tudo muito coerente com o propósito de “esclarecer os cidadãos”, que está nas origens iluministas da atividade jornalística. Mas um mínimo de atenção à abordagem adotada permite perceber que esse “esclarecimento” supostamente desinteressado, apresentado como um genuíno exemplo de serviço público, caminha por um sentido determinado e se orienta por uma concepção de cidadania bem definida.
Na mira, o papel do Estado
Um dos episódios mais ilustrativos levou o título “Mobilização e cidadania”. Começa com as imagens do “exército de donas de casa armadas com pranchas e canetas” a fiscalizar preços em supermercados. O repórter esclarece: “o Movimento das Donas de Casa, que existe há 19 anos, não se limita a conferir preços. Ele foi essencial para a aprovação da lei dos direitos do consumidor”, que, entre tantas coisas, resolveu o problema da compradora de uma geladeira que deixou de funcionar três dias depois.
Da cozinha da consumidora satisfeita, a cena muda para uma cadeia. Caminhando pelo corredor do presídio, o repórter sublinha a importância da mobilização das pessoas na defesa de seus interesses ? no caso, a aprovação do Código de Defesa do Consumidor. “Uma lei tem sempre dois propósitos. O primeiro é evitar que um determinado crime seja cometido. Mas, se acontecer, a lei serve para aplicar ao criminoso uma pena que sirva de reparação às vítimas, que faça justiça e evite que o mau exemplo se repita.”
Ato contínuo, o repórter fecha a porta da cela com o estrondo ampliado pelo efeito sonoro. Corta para a cena seguinte, a história do seqüestro e assassinato, em 1992, de uma menina de 5 anos, que teve o corpo carbonizado. “Foi justamente a mobilização popular que levou o Congresso Nacional a mudar a legislação anti-seqüestro”, diz o repórter. “Mobilização que ganhou força depois de um crime bárbaro” e teve como resultado a ampliação do alcance da Lei de Crimes Hediondos, que teria tornado o país mais justo.
Está aí o vínculo tão caro ao neoliberalismo: o sentido da cidadania associado ao mercado. O cidadão cioso de seus direitos consome boas geladeiras e luta pela sua segurança. E essa luta implica radicalização punitiva: o sistema penal deve ser severo para trancafiar os desonestos ou assassinos. Punição pura e simples, de acordo com a lógica simplória do “bateu, levou”, sem qualquer consideração, mínima que seja, a respeito da eficácia ? nem vou dizer do sentido ? das penas impostas.
Essas considerações apontam para o vínculo entre mídia e sistema penal, que Nilo Batista explora densamente em um de seus recentes artigos (“Mídia e sistema penal no capitalismo tardio”, em Discursos Sediciosos ? crime, direito e sociedade, n? 12, Editora Revan/Instituto Carioca de Criminologia, 2? semestre de 2002). Tal vínculo é absolutamente adequado ao projeto de redução do papel do Estado para a legitimação da empresa e do mercado como espaço da política. Não por acaso, tornou-se lugar-comum a denominação “empresa-cidadã”, absurdo conceitual já denunciado há anos por Francisco de Oliveira, que apontava a incongruência de se investir de sentido político algo que é do domínio estritamente econômico. O recurso ao sistema penal é um aspecto decisivo para esse projeto, pois o cidadão válido é o que tem cartão de crédito; o consumidor falho, disfuncional, representa o perigo que deve ser retirado de circulação.
Condição social, detalhe menor
Desse projeto a mídia participa com o entusiasmo e o interesse comuns a toda grande corporação. Com a vantagem de que tem o poder de comunicar, e portanto de sedimentar no senso comum conceitos naturalizados e apresentados como a própria expressão do bom senso.
Outro exemplo, na mesma série de reportagens, traçava o “retrato do medo”, “um dos principais problemas das nossas cidades”. É importante acompanhar a seqüência da matéria.
Locutor:
“…vamos ver como a violência afeta diretamente a vida dos cidadãos. Sem estatísticas confiáveis sobre segurança pública ao longo da década de 90, os números dão lugar às imagens. E elas dizem muito.”
Repórter (off):
“Você vai ver um dos piores retratos da grande cidade.”
A fala é paralela à cena que começa com a câmera fechando o quadro num espelho retrovisor de carro que reflete parte do rosto de uma pessoa; corta para flashes, ao som de cliques sucessivos de máquina fotográfica (os tais “retratos”), documentando um assalto a motorista no trânsito parado.
Corta para depoimento 1 (mulher negra de meia-idade, aparência humilde, na rua):
“Mesmo dentro de casa a gente tem medo das coisas.”
Repórter (off), sobre um flash do centro de São Paulo:
“Mas só na cidade de São Paulo 14 pessoas foram assassinadas por dia no ano passado.”
Corta para depoimento 2 (mulher loura, pouco mais jovem, de classe média, na rua):
“Eu, por exemplo, evito sensivelmente sair à noite com o meu carro.”
Nem se diga das incongruências originais: as imagens “dizem muito”, mas revelam um assalto, o repórter fala em mortes; as estatísticas não são confiáveis, mas, ato contínuo, apresenta-se uma estatística ? as 14 mortes diárias na capital paulista. Confiável ou não, importa perceber que se trata de um dado genérico, que não informa onde tais vítimas são produzidas, nem sua condição social. Pela seqüência de depoimentos (mulher negra pobre, mulher branca de classe média), aparentemente a intenção é insinuar que a violência atinge a todos da mesma forma. Assim, dissemina-se a sensação de medo, cuja conseqüência costuma ser aquela adequada ao sistema: o apelo à radicalização punitiva como garantia de uma vida tranqüila.
Mas a condição social parece mesmo ser um detalhe menor para a cidadania segundo a Globo. Na mesma série, uma reportagem apresentava “duas comunidades de Belo Horizonte” que mostravam “o caminho para melhorar as condições de vida nas metrópoles”: uma, de moradores de uma favela, com as habituais carências básicas de saneamento e infra-estrutura; a outra, um condomínio de classe média que, “em comparação, já conquistou quase tudo”. Apesar disso, diz o repórter: “Não importa qual seja o nível de renda das pessoas, a grande cidade brasileira trouxe uma importantíssima lição para as comunidades que vivem nela. É fundamental se organizar e não dá para esperar pelo poder público.”
Montagens, cortes, edições…
Já tive oportunidade de comentar neste Observatório [“A Globo e o discurso da concórdia”, ver remissão abaixo] quantas questões fundamentais se escondiam nessa formulação aparentemente inocente: dizer que não importa exatamente o que mais importa, a condição social das pessoas, indissociável de sua capacidade de organização e de seu poder de pressão para garantir direitos e ampliar conquistas; dizer que não dá para esperar pelo poder público, uma crítica à omissão (freqüentemente real) do Estado em relação à periferia, mas uma crítica que estende facilmente seu sentido no caminho da desqualificação automática do poder público, quando é justamente na relação com esse poder ? e não em substituição a ele ? que as “comunidades” se organizam.
O quadro se completa na fala final do repórter: “Organizar-se dentro da grande cidade é um dos poucos retratos unindo brasileiros por cima do fosso social que os separa.” Uma união, portanto, que passa “por cima” de conflitos, pois conflitos não cabem nesta muito peculiar noção de cidadania.
Para concluir, um comentário: a matéria sobre o “retrato do medo” traz uma incongruência que provavelmente passou despercebida pelos espectadores, mas que se torna evidente na leitura da transcrição do áudio. Por que falar em número de assassinatos, assim, sem gancho algum, e ainda por cima iniciando a frase por um “mas…”? A explicação para aquela adversativa fora de lugar só apareceu para quem pôde ver novamente a matéria, cerca de 10 dias depois, no programa Almanaque, do canal pago Globo News, que anunciava a repetição de todas as reportagens da série, agrupadas agora em blocos temáticos: ali estava um trecho cortado da matéria que foi ao ar no JN, no qual o repórter citava uma estatística informando sobre a redução na taxa de homicídios, para seguir com a fala sobre o número de mortos em São Paulo. “Mas” esta não foi a única alteração: naquela e em várias outras matérias houve inclusão de trechos de entrevistas, alteração de montagem, introdução de cenas ? em suma, apresentou-se uma edição diferente para o que seria uma simples repetição da série.
Mas montagens, cortes, edições, o que isso tem a ver com produção de sentido?
(*) Jornalista, professora de Jornalismo da Universidade Federal Fluminense
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