Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A ciência aplicada à morte

TAMBORES DE GUERRA

Ulisses Capozzoli (*)

O baixinho, enfezado e genial autor de Os Nus e os Mortos, um dos grandes clássicos ambientados na Segunda Guerra Mundial, Norman Mailer volta a pôr o dedo na ferida. Na edição de domingo (2/3) de O Estado de S. Paulo (pág. A14), num texto de menos de meia página que sintetiza uma fala concedida a um pequeno grupo de intelectuais do Instituto para as Humanidades de Los Angeles, Mailer diz mais que obras inteiras sobre a natureza do nosso tempo.

Na síntese, feita por Nathan Gardels, editor do Global Viewpoint e um de seus ouvintes, Mailer diz sem maiores rodeios: "Minha hipótese é que o presidente George W. Bush e vários conservadores concluíram que a única maneira de salvar os Estados Unidos e tirá-lo do atual declínio é tornar-se um regime com maior presença militar e rumar para o império. Meu medo é perdermos a democracia no processo".

O declínio da América, na visão de Mailer, além da manipulação dos balanços de grandes empresas, escândalos do FBI e abusos sexuais de padres, está em que "os jovens não sabem mais ler. Especialmente para os conservadores, a cultura se tornou sexual demais".

Uma das grandes preocupações de Bush em relação à decadência da América, na interpretação de Mailer, está no fato de "?os estudos principais?, como ciência, tecnologia e engenharia terem desempenho insatisfatório nas universidades. O número de Ph.D?s americanos diminui mais e mais. Mas o número de asiáticos que obtêm doutorado nesses mesmos estudos aumenta rapidamente".

A idéia de que os Estados Unidos se preparam para uma versão moderna de Roma antiga e impor ao mundo uma reforma moral parece uma preocupação crescente de Mailer. Numa entrevista concedida à American Conservative ? e reproduzida parcialmente na edição do suplemento Mais! (Folha de S.Paulo, 2/2, págs. 10-12) ?, Mailer já antevia que "quando nos tornarmos uma versão do século 21 do antigo império romano, então a reforma moral entrará em cena. Os militares são obviamente mais puritanos que os veículos de entretenimento".

Arsenal contra a guerra

Uma leitura comparada do que tem sido publicado sobre um "renascimento" do império romano permite construir um cenário, no mínimo, muito intrigante tendo como pano de fundo a produção científica. Não foram poucos os cientistas que falaram (Einstein foi um dos mais comprometidos com esta questão) do significado de produção da ciência na transformação do mundo. O problema, hoje, é que a complexidade da situação é grande demais para permitir leituras lineares. Talvez tudo o que se possa fazer, neste momento, é um esforço de reflexão.

Numa edição dominical da Folha de S.Paulo (23/2, pág. A24), David Frum, ex-redator dos discursos de Bush, demitido após sua mulher ter revelado a amigos que foi ele o autor da expressão "eixo do mal", o próprio Frum entende que os Estados Unidos, "apesar da supremacia militar, não são a Roma moderna porque a segurança de sua população depende de cooperação internacional".

O mais interessante da entrevista de Frum, concedida a Marcio Aith, no entanto, é o ritual atual da Casa Branca, onde o dia começa com a leitura da Bíblia. Frum revela que a primeira frase que ouviu no início de seu trabalho foi: "Não te vi na leitura da Bíblia".

A contradição, neste caso, segundo o ex-presidente norte-americano Jimmy Carter, Prêmio Nobel da Paz de 2002, é que, excetuando "uns poucos representantes da Convenção Batista do Sul, que é intensamente influenciada pelo seu comprometimento com Israel, baseada na teologia escatológica", todos os líderes religiosos são contra a guerra com o Iraque.

Pacifista, ainda que tenha enfrentado dificuldades durante seu governo, Carter desfia uma série de razões para argumentar que trata-se de uma "guerra injusta", este conflito prestes a ser deflagrado contra o Iraque. De fato, num texto publicado pelo Estado de S.Paulo (8/3, pág. A16) Gilles Lapouge escreve que "o paradoxo é que as autoridades cristãs ? sejam elas católicas ou protestantes ? não têm nenhuma intenção de seguir o exemplo de Bush em sua ?cruzada"?.

De fato, o papa João Paulo II já acionou seu arsenal contra a guerra, a máquina de comunicação social do Vaticano. A Rádio Vaticano, avalia Lapouge, é sua "principal força de ataque, com programas diários em 29 línguas principais, além de 10 outras menos universais". No centro da máquina de comunicação do Vaticano, o jesuíta Pasquale Borgomeo, que assina os editoriais, tece críticas contra a visão unilateral do presidente americano e, segundo Lapouge, "reflete, com toda a certeza, a opinião do papa".

Saga humana

Ainda assim, em função da pressão diplomática dos Estados Unidos, é possível que, nos próximos dias, Bush filho consiga alguma autorização formal da ONU para atacar o Iraque.

A arrogância do presidente americano em ignorar o que pensa a maior parte dos países do mundo (Espanha e Inglaterra, por exemplo, dão apoio aos Estados Unidos apesar da crescente rejeição interna de suas populações, o que deve sugerir alguma observação sobre o sentido atual de democracia e o que os anarquistas escreveram sobre isso ao longo dos últimos 200 anos) baseia-se numa máquina de guerra com poder inédito na história da civilização. E a base de tudo isso é o conhecimento técnico-científico.

Na edição de Scientific American Brasil que está nas bancas, Michael Putre, editor de The Journal of Electronic Defense (JED) assina um texto de seis páginas mostrando o estágio das chamadas "bombas inteligentes" que os Estados Unidos têm disponível para atirar sobre o Iraque. As bombas são dirigidas pelo sistema de satélites GPS, o mesmo que orienta aviões e navios ao permitir uma localização precisa de um ponto sobre a superfície do planeta.

Publicar trabalhos com este conteúdo, neste momento, longe de ser um incentivo à guerra, como entendem críticos apressados, é uma maneira de se denunciar o uso da ciência apenas para as tarefas de destruição.

Em seu escrito, Carter não se ilude com a propalada eficiência desses sistemas em que o item mais barato custa em torno de 20 mil dólares, o suficiente para se construir pelo menos quatro moradias no estilo franciscano dos países do Terceiro Mundo.

Por tudo isso, há quem diga que, de um ponto de vista ? digamos ? freudiano, George W. Bush é ainda mais primitivo que o líder iraquiano Saddam Hussein, embora se esforce para demonstrar o contrário.

O impacto de uma guerra que se aproxima e a velocidade de deterioração econômica nos países socialmente mais desenvolvidos geram uma tensão e um desgaste psicológicos que afetam, com maior ou menor intensidade, todas as sociedades do planeta. Mesmo os povos mais isolados, de alguma maneira, deverão sofrer os impactos dessas forças destruidoras que, devido à sua complexidade, só podem ser referidas e não avaliadas numericamente.

Daí o interesse em abordagens sobre psicanálise como faz Veja (edição n? 1.793, 12/3/03), envolvendo uma nova tradução de Sigmund Freud para o inglês, tarefa a que se dedica o psicanalista britânico Adam Phillips.

Desde o começo, Freud falou dos "detratores da psicanálise", interpretada pelo nazismo como "ciência judia" ? o que também se estendeu aos trabalhos de Einstein. Os inimigos da psicanálise enxergados por Freud não seriam, no entanto, apenas nazistas. Outros olhares também encontraram, na psicanálise, razões pouco consistentes para considerações relevantes.

O fascinante, entre outras questões, é que Freud foi um grande escritor. Phillips diz que uma releitura de seus originais deve trazer maior inteligibilidade à psicanálise, cuja tradução para o inglês popularizou-a em todo o mundo.

Ler textos como Mal Estar na Civilização e Futuro de Uma Ilusão, entre outros, na edição espanhola autorizada por Freud e apresentada por Ortega y Gasset, de qualquer maneira é uma possibilidade de localizar-se na saga humana na superfície deste planeta.

A partir de Freud, é no mínimo interessante observar os rituais da Casa Branca, onde as noitadas regadas a pizza, da administração Clinton, foram substituídas pelas rígidas leituras matinais da Bíblia. Ou, se quiserem, as aventuras sexuais extraconjugais de Clinton, a quem Marcello Mastroianni chamou de um "presidente saudável", censurando os americanos pelo que considerava um puritanismo besta.

No mesmo barco

Talvez muita gente se sinta ofendida à referência de que Clinton ia para a cama, ou, ao menos algumas vezes, preferiu a posição ereta, para resolver suas demandas sexuais. Mas, com isso, não precisou empurrar levas de jovens soldados para o terror dos campos de batalha com a mesma determinação revelada por Bush filho, carente de afeto especialmente da mãe.

Os tempos atuais são de uma crueldade ímpar. Insegurança trazida pela guerra (no Iraque e na Coréia do Norte, sem falar de conflitos envolvendo paramilitares na Colômbia e traficantes no Rio de Janeiro, para mencionar apenas áreas mais próximas), desemprego e perspectivas inéditas de conhecimento científico em áreas como a clonagem humana.

Se já houve tempos difíceis no passado, como aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial, em nações inteiras (como ocorreu no Brasil) as sociedades não estavam urbanizadas. Um tanto distanciadas dos acontecimentos, apesar do rádio, encontravam na relação direta com a natureza um espaço de sanidade mental que perdeu muito de sua dimensão desde então. Com a urbanização e as transformações que se seguiram, a própria estrutura de família se alterou.

A grande família, representada por tios e avós, inclusive tios-avós de um passado ainda recente, deixa, cada vez mais intenso, um sentimento de solidão.

Não há apoio em lugar algum e a competição é cada vez mais feroz, estimulada por uma programação estúpida especialmente da televisão, onde a violência é a oferta básica.

Reler Freud e não perder de vista a produção crítica de gente que sabe do que fala, caso de Norman Mailer, é esforçar-se para ter uma mínimo de inteligibilidade do que está acontecendo e, assim, não embarcar na canoa furada do salve-se quem puder das relações permeadas pelo medo e insegurança psicológica.

Por último, um pedido de desculpas a leitores e críticos.

Recentemente escrevi um texto sobre gravidade zero e as explicações que dei para isso não são as melhores. Recebi duas cartas que não li. Não por descaso aos que fizeram a observação. Mas por me dar conta de que havia escrito uma besteira. Desconsiderei Kepler, por exemplo, o que não poderia ter feito.

Não tenho pretensões de infalibilidade nem intenção de escamotear meus erros. Daí meu pedido de desculpas com um enfático mea culpa como os padres costumavam fazer nas missas de domingo, quando ainda eram rezadas em latim.

Gostaria muito de ter me envolvido com os 50 anos da descoberta da forma espiralada do DNA, assunto que a Folha de S.Paulo abordou em uma primorosa edição. Mas suponho que teremos tempo para o DNA e as conseqüências de sua forma para a sociedade contemporânea.

A eminência de guerra é um assunto mais dramático. Em todos os sentidos. O dia amanheceu cinzento e com ele brota uma nostalgia de outros tempos. Quando pudemos sonhar que tudo poderia ser menos bruto. Talvez possamos vir a ter esses sonhos novamente. Por enquanto é preciso pensar no que acontece. O mundo, mais que nunca, é um sistema de vasos comunicantes. Qualquer impacto em uma região, imediatamente será transferido para as demais.

Estamos, literalmente, no mesmo barco.

(*) Jornalista, mestre em Ciências pela USP, presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Científico (ABJC) e editor de Scientific American Brasil