Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A conexão Bush – Murdoch

O VEXAME AMERICANO

Argemiro Ferreira, de Nova York

As grandes redes de TV reconheceram implicitamente que foram responsáveis ao menos em parte pela controvérsia da Flórida. Algumas até iniciaram investigação para descobrir onde erraram. Mas a culpa da Fox – do império de Rupert Murdoch, que cresceu à sombra da dama de ferro Margaret Thatcher e de seu discípulo Ronald Reagan – pode superar a das outras: sua central informativa tinha uma conexão direta com os irmãos Jeb e George W. Bush; o primeiro, governador da Flórida.

Os principais veículos da mídia dos EUA – entre eles, USA Today, The New York Times, Los Angeles Times e agência Associated Press (AP) – estão devassando o estranho papel desempenhado em cargo-chave da Fox News por um certo John Ellis. Primo em primeiro grau dos irmãos Bush, cabia a ele decidir que resultados divulgar na noite da eleição.

Partiu de Ellis, sabe-se agora, a decisão de informar, às 2h16 da madrugada, que o candidato republicano ganhara a Flórida e, em conseqüência disso, já era o presidente eleito dos EUA. As outras redes hesitaram por quatro minutos. E depois, inseguras e amedrontadas pela competição,
referendaram a informação que se revelou falsa.

Ante a unanimidade das projeções da TV, o vice-presidente Al Gore resolveu telefonar a Bush, cumprimentá-lo e reconhecer a derrota. Só algum tempo depois, talvez uma hora, alertado por assessores, descobriu não haver ainda vencedor definido na Flórida. Pequeno número de votos separava os dois candidatos. Telefonou de novo, retirou o que dissera e as TVs recuaram.

A ligação de Ellis com os Bush é analisada agora no contexto das relações jornalista-fonte e à luz da erosão da integridade jornalística nos impérios de mídia. “Isso ocorre na arena política e ainda no mundo econômico, onde o jornalismo torna-se subsidiário dos interesses de corporações – a ABC dentro da Disney, as revistas da Time Inc. na AOL”, escreveu Tom Rosenstiel, do Committee of Concerned Journalists, no Los Angeles Times. “A maior ameaça da revolução da informação é que podemos perder o jornalismo como árbitro honesto do cidadão”, acrescentou. Para ele, o caso reflete problema maior – a confusão entre política e jornalismo. Não é novidade haver pessoas a se movimentarem entre os dois. O episódio mostra como o jornalismo também se confunde crescentemente com outras áreas da mídia – ficção, infomercial, infotainment (informação+entretenimento) e propaganda política.

Murdoch e sua News Corp jogam pesado, sem disfarces. O New York Post e a Fox fazem questão de expor sua tendência político-ideológica. Assumem ostensivamente o conservadorismo do magnata australiano, naturalizado americano para ser dono da Fox. (Outros gostam do exemplo: atribuiu-se a Jack Webb, presidente da General Electric, dona da NBC, a pressão sobre o âncora Tom Brokaw para também dar a vitória a Bush).

O primo governador

O que permitiu à Fox atropelar as outras redes e dar as cartas no dia da eleição foi o fato de estarem todas elas associadas (com a agência AP), por motivos de economia, no consórcio Voter News Service (VNS), cuja missão era ouvir eleitores à saída das urnas e projetar os resultados. Cada uma divulgava como sua a tabulação que, na verdade, tinha a mesma origem, o VNS.

Especialista da VNS explicou depois: por causa de erro não percebido a tempo, havia uma diferença de 50 mil votos entre os candidatos, que distorceu a projeção. Mas nos desdobramentos que se seguiram os 50 mil viraram 30 mil, depois 20 mil, 5 mil e afinal desapareceram. Veio o pânico, a retratação, e a indefinição do resultado, mantendo o país em suspenso.

No contexto da ética jornalística, o papel das redes de TV foi crítico na conexão entre Ellis, de seu gabinete na Fox, em Nova York, o governador George W. Bush em Austin, Texas, e o governador Jeb Bush, na Flórida (e depois também no Texas). Ellis alega nada ter feito de impróprio – mas a Fox, ante as denúncias da mídia, admitiu estar investigando o que houve.

John Ellis tem 47 anos é sobrinho do ex-presidente George Bush, filho de uma irmã por sua vez tia do candidato e do governador da Flórida. Entre os que questionam o papel de Ellis está Bob Steele, diretor do programa de ética do Instituto Poynter, da Flórida. As conversas do executivo da Fox com os primos, disse Steele, são “perturbadoras” o suficiente para “manchar a reputação jornalística” dessa rede de TV, referindo-se à Fox.

A investigação do assunto pode determinar ainda se a breve entrevista convocada por Bush pouco depois da projeção inicial das emissoras, perto das 19h30, dando a vitória na Flórida a Gore, não foi também resultado de telefonema de Ellis. Ali Bush fora incisivo: “A projeção das TVs está
errada”, disse, com todas as letras. Em seguida as demais redes de TV retiraram o que tinham dito.

Os dois erros foram igualmente graves, escancararam a leviandade das redes e a pressa para ganhar a guerra da audiência. Apoiadas, todas, nos números do mesmo VNS, enganaram o país. E Ellis, tido como analista competente de números e pesquisas, estava no coração da central informativa. A Fox atropelou e as outras, pressionadas, capitularam.

Lealdade aos parentes

Uma das pessoas que se disseram surpreendidas e desapontadas pelo papel de Ellis foi Marvin Kalb, do Centro Shrenstein sobre Imprensa, Política e Programas, da Universidade de Harvard. Para ele, é grave o fato de Ellis ficar em contato com os Bush enquanto fazia seu trabalho jornalístico. Afinal, antes, o próprio Ellis deixara um emprego pelo mesmo conflito de interesses. Foi em 1998, quando o primo George W. anunciou a decisão de ser candidato à Casa Branca. Ellis despediu-se de sua coluna no jornal Boston Globe e explicou aos leitores: “Sou leal ao meu primo e coloco essa lealdade à frente de qualquer outra, a não ser minha família mais próxima”. Estava certo, diz Kalb. E devia ter feito o mesmo na Fox.

Rosenstiel complementou esse raciocínio, no artigo do Los Angeles Times, ao escrever: “O cerne da credibilidade do jornalismo, de dar a notícia sem medo ou favorecimento, é a idéia de que um jornalista tem de ser, em primeiro lugar, cidadão – acima da filiação partidária, dos eventuais interesses de acionistas, da preferência dos anunciantes ou do capricho do patrão”.

A princípio a Fox ainda tentou subestimar o caso quando saíram as primeiras informações na mídia. Seu diretor geral de jornalismo, John Moody, até assumiu a responsabilidade pela decisão de dar a vitória a Bush na Flórida. Mas, afinal, disse que o vínculo de Ellis com a Fox está sob reexame, inclusive porque o primo dos primos pode vir a ser interrogado no Congresso.

As outras emissoras também fazem investigações internas sobre o desastre para o qual tanto contribuíram. Na NBC, a questão por enquanto está a cargo do ombudsman David McCormick. Relatório preliminar sai a qualquer momento. A CBS formou comissão de três pessoas, uma delas de fora – Kathleen Hall Maieson, reitora da Escola Annenberg de Comunicação.

Tanto a ABC como a CNN disseram que o assunto é analisado desde 9 de novembro. Mas é sintomático que a primeira análise do caso Ellis tenha saído na revista The New Yorker. Ela afirmou que o diretor da Fox “manteve-se em constante contato com seus primos em Austin, antecipando para eles as contagens de votos a serem veiculadas”. É fato que eles trocaram muitas figurinhas.

Marinilda Carvalho

Um pequeno adendo à matéria de Argemiro Ferreira. John Ellis, the cousin, está sem “carteira assinada” há tempos. Sabem para onde ele foi após deixar o Boston Globe por ser “leal demais” ao primo George W.? Para a Fox. Sabem em que cargo? Consultor. Sabem de quê? De pesquisas sobre as eleições presidenciais. Nem é preciso dizer que o primo dele já postulava a candidatura à Presidência. Um mês antes da eleição, Ellis foi contratado pela Fox por 30 dias. Para cuidar das pesquisas.

A coluna de despedida dele do Globe foi claríssima: saía por ser “mais leal” ao primo do que a qualquer outra pessoa. Então como Mr. Moody pode dizer que nunca imaginaria um papelão desses por parte de Ellis?

É bom lembrar que na matéria da New Yorker John Ellis contou alegremente à repórter as “emoções” da noite da eleição. Disse que falou “o dia inteiro” e a “noite inteira” com Jebbie (Jeb Bush, o outro primo, governador da… Flórida!) e George W.: “Eles me ligaram umas 800 vezes”. O tolinho fanfarrão nem se tocara de que naquela madrugada ele e a Fox exibiram despudoradamente sua porção “pró-consult”. Lá também tem disso, a verdade é essa.

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