MÍDIA EM 2003
Muniz Sodré (*)
Crise é a palavra-síntese para o que se passou com a imprensa no ano de 2003. O aspecto mais evidente, e de imediato mais preocupante, é o econômico, que tem suscitado especulações sobre uma possível injeção financeira por parte do Estado (o BNDES, mais concretamente) como tentativa de salvar a mídia nacional de uma completa derrocada. Toda esta questão foi bastante comentada por diversos analistas aqui mesmo no Observatório da Imprensa, em especial por Alberto Dines. A entrevista recente do dono da Folha de S. Paulo, Octavio Frias de Oliveira, ao boletim noticioso da AOL, trouxe mais algum molho para as discussões: na opinião do experiente empresário, 40 anos à frente de seu jornal, o que o governo quer mesmo é ver "a mídia de joelhos".
Quando faltam os meios de que dependem empresários e profissionais para manter em padrões razoáveis uma atividade qualquer, é difícil aceitar reflexões que não digam respeito ao imediato do problema, que é dinheiro, em termos claros e simples. Por isso, comentários e análises tendem a focalizar a dimensão econômica, que ademais dá ensejo a que se façam conexões bastante viáveis entre o enorme endividamento dos jornais e as indecisões macroeconômicas que vêm marcando gigantes do Primeiro Mundo, como Estados Unidos, Alemanha e Japão. A entrevista de Octavio Frias de Oliveira de certo modo pontuou sinteticamente as abordagens dessa natureza que apareceram ao longo do ano.
Entretanto, impõe-se a discussão de outros aspectos da crise, nem sempre considerados. Para começar, não custa lembrar que toda crise, por mais dolorosa ou inquietante que seja, traz consigo a gravidade de uma crítica (descriminar, criticar são verbos que compõem a história semântica dessa palavra) e a reivindicação implícita de uma "clínica", que é a atitude de cuidado por parte de quem se debruça responsavelmente sobre o problema. Historicamente, a imprensa cívica tem servido como "arma" da crítica contra o poder e seus desmandos, mas sempre tímida quando se trata de fazer a crítica radical dessa arma, isto é, de rever a fundo os seus próprios pressupostos. A crítica jornalística de sua própria atividade oscila entre aspectos técnicos e éticos. Dos primeiros, cuidam as eventuais reformas estéticas e tecnológicas; dos segundos se ocupam, além do público vigilante, os próprios profissionais, política e moralmente empenhados.
"Complicado" para todos
Essa louvável oscilação recalca, no entanto, umas quantas questões que, por permanecerem intocadas, acabam dando a impressão de eternidade da imprensa tal e qual existe. Procurando ser mais claro: a imprensa tal como a conhecemos é uma formulação histórica que pode muito bem ser datada, isto é, ser atravessada por imperativos de princípio, meio e fim. Não à toa, os pensadores desta nossa modernidade tardia, ou Baixa Modernidade (expressão preferida por Eduardo Portella), têm-se esmerado na reflexão sobre o "fim" de coisas ? a idéia de homem universal, a política representativa, a arte etc. Toda e qualquer experiência é espreitada por uma finitude latente em suas próprias raízes.
É, assim, bastante viável a hipótese de que a imprensa possa estar atravessando, além das dificuldades financeiras que sempre caracterizaram em maior ou menor grau esse tipo de atividade, uma crise de finitude. Isto não quer dizer que a imprensa vá acabar, pelo contrário, ela nos parece mais necessária do que nunca. Mas é possível que essa crise seja a de "saturação" de uma forma (conceito favorito do sociólogo Gurvitch para dar conta da obsolescência de certas formas sociais), ainda por demais vinculada à produção oitocentista de discursos. A esfera pública alargou-se tecnicamente, por meio da televisão e da informática, mas só tem feito encolher-se em termos de participação cívica, a mesma que sempre requereu um jornalismo politicamente forte. Diferenças de opinião editorialística à parte, os jornais parecem-se muito uns com os outros, como se a pauta fosse feita por jornalistas para jornalistas. Ao mesmo tempo, cada vez mais a matéria jornalística configura-se mero suporte publicitário para a venda de serviços, sejam de anunciantes, sejam da própria empresa jornalística.
O fato é que a televisão e a internet sob a égide do mercado de consumo não substituem, do ponto de vista do interesse da responsabilidade coletiva, a imprensa que se constituiu pós-Revolução Francesa. Na citada entrevista do proprietário da Folha, quando perguntado sobre o fenômeno das pseudonotícias na mídia, ele praticamente descarta o interesse de se examinar o assunto a propósito da televisão. Hesita, não sabe bem o que deve dizer e conclui com algo como "é complicado…" E ele tem razão: a mídia eletrônica é outra coisa, a menos que se esteja no Oriente Médio, onde a rede de TV al-Jazira, precisamente no vazio de uma imprensa estiolada, parece desempenhar um papel político importante para os árabes.
Mas a palavra "complicado", em suas diferentes acepções semânticas, vale para todos. Desta crise não se sairá facilmente. Ainda que um "Promídia" governamental possa vir em socorro dos desvalidos, a crise continuará a se fazer presente, demandando muito mais do que dinheiro. Reflexão e coragem são os nomes da falta.
(*) Jornalista, professor da UFRJ