COBERTURA ELEITORAL
Luiz Weis (*)
A ilustração da capa da edição da Veja (n? 1.774) que circula com data de 23 de outubro é de ver ? uma, duas, muitas vezes ? para crer.
No Brasil de hoje, ela dá um novo e degradante significado ao que ingleses chamam gutter press (imprensa de esgoto). Uma fera monstruosa com garras em curva, cauda do Cão e uma coleira pontiaguda da qual pende o distintivo da estrela vermelha do PT só não investe contra o leitor porque está segura por quatro correias esticadas ? sinal de que a criatura hedionda forceja para se soltar.
A coisa tem três cabeças: a de um Marx com caninos de vampiro, a de um Lênin que parece rosnar com os dentes cerrados e a de um Trotsky com um focinho judaico e uma baba gosmenta a lhe escorrer pelo canto da boca.
O repulsivo desenho parece ter saltado diretamente das páginas dos mais hidrófobos panfletos anticomunistas dos tempos da guerra fria e do imediato pré-1964 no Brasil. Ou, no caso de Trotsky, é cópia fiel da incitadora iconografia nazifascista.
É o que é, para a Veja, o braço esquerdo do petismo. A chamada resume: “O que querem os radicais do PT”. A explicação vem em seguida: “Entre os petistas, 30% são de alas revolucionárias. Ficaram silenciosos durante a campanha. Se Lula ganhar, vão cobrar a fatura. O PT diz que não paga”.
Eis um assunto de legítimo interesse jornalístico, uma matéria de capa defensável para uma publicação que começa a circular oito dias antes de um pleito cujo resultado é quase uma certeza ? embora a deglutição do sapo barbudo de outrora pelo baronato industrial brasileiro talvez seja um tema mais quente.
Só que a caricatura da Besta do Apocalipse estraçalha o que possa haver de jornalismo na capa do semanário e instaura em seu lugar o terrorismo eleitoral em estado bruto.
A analogia entre a esquerda petista com as figuras totêmicas da ortodoxia vermelha é um óbvio despropósito, salvo no caso dos grupelhos que vivem com a cabeça em algum lugar do passado, fazem muito barulho e, afinal, não apitam nada nas decisões do partido. Mas quantos leitores da Veja saberão disso? “Trinta por cento”, como informa a revista, é gente à beça.
Imagem e palavras se combinam, assim, para dar o recado da revista: Lula pode ter aparado as garras, mas as ferozes facções petistas que não desistiram de comunizar o Brasil estão aí, mal-e-mal contidas, esperando a sua hora ? e ninguém se engane sobre o que elas poderão aprontar se o PT tomar o Planalto. Portanto, leitor-eleitor, não diga depois que Veja não avisou: votar em Lula é dar uma chance para a subversão. Será que vale a pena correr esse risco?
A capa da Veja é a coisa mais vil que se fez no país durante toda a campanha presidencial. Dá asco.
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O Jornal Nacional, da Rede Globo, ouviu Serra e Lula, nos dias 17 e 18/10. William Bonner e Fátima Bernardes não pareciam os mesmos que em julho sabatinaram pela primeira vez e sem a menor condescendência os quatro principais presidenciáveis ? o que levou o colunista Luiz Fernando Verissimo a escrever a crônica “Bonner para presidente”.
Agora, o desafio aos entrevistados foi nulo. Logo, a serventia das entrevistas para o eleitor, também. As perguntas que eles fizeram ? ou que alguém mandou que fizessem ? espantaram pela flacidez.
As duas rodadas de 7 minutos cada, em que os candidatos foram ouvidos onde estivessem ? e os marqueteiros de Lula tiveram a idéia genial de pôr uma bandeira do Brasil como pano de fundo para a sua aparição ? acabaram virando um ato de lesa-eleitor.
Em lugar das cobranças desconfortáveis (e desconcertantes, para os padrões da TV brasileira) daquela rodada inicial de saudosa memória, tucano e petista foram contemplados com platitudes, água açucarada e oportunidades para fazerem propaganda.
Exemplos: “Qual tem sido sua mensagem mais freqüente nesses últimos dias para os eleitores brasileiros?”. “Qual tem sido a maior preocupação que o senhor tem ouvido dos eleitores em comícios e encontros?”. “Qual a avaliação que o senhor faz da democracia brasileira?”.
A rigor, só duas perguntas lembraram uma entrevista-como-se-deve. Para Lula: “Em seu discurso duro, ontem, o senhor fez críticas ao governo. Seria o fim do ?Lulinha, paz e amor??”. Para Serra: “O senhor vê algum erro do Banco Central no manejo desses títulos a pagar (indexados ao dólar)?”. Mesmo então, os candidatos respondiam o que lhes convinha ? e se ficava por aí. Isso e nada seria a mesma coisa.
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O Estado de S.Paulo deixou passar entre as pernas a ocasião de abrir na capa da edição de sábado (19/10) aquela que talvez tenha sido até então a melhor foto da campanha, candidata natural a um prêmio Esso.
De autoria de Thiago Queiróz, vale uma tese de sociologia política. Mostra, na página A4, a chegada de um convidado para o jantar de cerca de 300 talheres oferecido pelo empresário Ivo (Valisère) Rosset para Lula, em São Paulo, na quinta-feira.
O convidado está de carro. Gotas de chuva pontilham a janela fechada. No assento, o homem cobre o rosto com o paletó escuro. Apenas deixa ver a calva e os cabelos ralos que ainda sobrevivem do lado direito da cabeça, a caminho da nuca.
Numa semana em que o grande assunto da disputa pelo Planalto foi o polêmico “tô com medo” da atriz Regina Duarte no programa de propaganda de Serra, o devido lugar da foto só poderia ser a A1 do Estadão.
Quem batesse os olhos no jornal e visse do que se tratava, imediatamente se perguntaria por que alguém, a caminho de dividir um prato de comida grã-fina com o “Lulinha, paz e amor”, numa ocasião badalada, tinha tanto medo de ser reconhecido. Será que isso diz algo dos novos endinheirados companheiros de viagem do petista? Ou do que eles acham que pode acontecer?
Para registro: o caçula da casa, o Jornal da Tarde, deu a foto no alto da página certa, mas por causa do seu projeto gráfico de capa de revista de variedades, o impacto se perdeu: a imagem era apenas uma entre uma dúzia ? e nem sequer a principal. (Esta mostrava a carioca Benedita da Silva ao lado de seu carro blindado, sob o título, entre aspas, “Vamos matar a governadora”.)
(*) Jornalista