Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A destruição de um sonho

NA MIRA DE ISRAEL

Luiz Weis (*)

Os ataques com bombas de efeito moral e balas de borracha a um comboio de cinco veículos blindados, transportando 25 jornalistas de vários países que pretendiam cobrir o encontro entre o enviado americano ao Oriente Médio, Anthony Zinni, e o presidente da Autoridade Palestina, Yasser Arafat, no que restava do seu QG em Ramallah, na sexta-feira, 6 de abril, foi ? pelo menos até então ? a manifestação mais notória da guerra à imprensa estrangeira desencadeada abertamente pelo governo Sharon, nos territórios palestinos reocupados a pretexto de destruir a "infra-estrutura do terror" antiisraelense.

Sob a cínica alegação de que os jornalistas foram obrigados a abandonar, "para sua própria segurança", as cidades palestinas invadidas e as demais regiões cisjordanianas consideradas "zonas militares fechadas" porque eles "poderiam ser confundidos com terroristas", como disse em um debate na CNN um porta-voz do Escritório de Imprensa do governo de Tel-Aviv, Israel nada mais faz do que imitar todo exército agressor que não distingue entre inimigos armados e civis indefesos: impedir que o mundo conheça ? ou melhor, veja ? as barbaridades praticadas contra a população palestina.

A decisão de intimidar e, de preferência, escorraçar da Cisjordânia jornalistas previamente credenciados por Israel visa impedir que a imprensa noticie atrocidades como a da menina de 14 anos "morta pelo exército quando saiu à janela, em Toubas" e o do garoto de 8 anos morto "num ataque de helicóptero com mísseis perto de Nablus" (O Estado de S.Paulo, 6/4/02). "Outro menino de 8 anos foi morto com mais três pessoas no campo de refugiados de Askar", acrescenta o jornal.

Como resumiu, com crua franqueza, um porta-voz militar israelense, citado por um repórter da TV francesa, em Belém: "Nada de imagens, nada de testemunhas, nada de matéria".

Nada que se possa dizer do combate fascista movido por Sharon contra a liberdade de expressão na Cisjordânia se compara, porém, ao depoimento publicado no New York Times no sábado, 6/4 ? disponível em <www.nytimes.com/2002/04/06/opinion/06KUTT.htm> ?, de autoria do jornalista palestino Daoud Kuttab, diretor do Instituto de Mídia Moderna da Universidade Al Quds, de Jerusalém.

Todo jornalista ? toda pessoa decente ? precisaria ler o artigo "Tirado do ar à força em Ramallah". Segue a íntegra:

"Ainda recordo o dia no começo de março de 1997, quando me entregaram uma folha de papel emitida pela Autoridade Palestina permitindo ao Instituto de Mídia Moderna da Universidade Al Quds estabelecer uma emissora local de TV em Ramallah. Com muita energia e quase sem recursos, iniciamos o processo de montar a TV Educativa Al Quds. Queríamos criar uma estação independente que não fosse nem ventríloquo do governo, nem um canal comercial que vivesse de shows e xampu.

"Não foi fácil, mas fomos amplamente bem sucedidos até esta semana.

"Cinco anos depois de nossa primeira emissão ? usando um transmissor de 40 watts para televisionar um peixinho dourado num aquário, nadando ao som de Beethoven ?, nossos sonhos foram estilhaçados. Nossa estação, que cresceu em tamanho, audiência e programação, foi destruída e soldados israelenses estão usando nossos escritórios e estúdios. Nenhuma ordem foi dada para esse fechamento. Não violamos lei alguma. A destruição foi simplesmente um ato de agressão gratuita.

"Desde o começo a vida era dura, mas nossa existência até esta semana jamais esteve em questão. Nossa missão de permanecer independentes recebeu ajuda apenas limitada. Muitos importantes doadores internacionais queriam auxiliar a emissora oficial como forma de promover a Autoridade Palestina. Mas, com a assistência de fundações palestinas, como a Associação para o Bem-Estar, e organizações internacionais, como a Sociedade Aberta e a Fundação Ford, fomos capazes de criar um TV palestina alternativa que gerava programas de serviço público a exemplo da PBS e C-Span.

"Líderes de cúpula da Autoridade Palestina não estavam felizes conosco. Quando passamos a transmitir ao vivo as sessões do eleito Conselho Legislativo palestino, a TV oficial começou a interferir nas nossas transmissões. Quando levamos ao ar uma sessão que tratava da corrupção na Autoridade Palestina, fui preso e mantido numa prisão palestina durante sete dias. Minha soltura, resultado de pressões locais e internacionais, ajudou a garantir a continuidade de nossa emissora.

"Desde então, e apesar de algumas programações críticas da Autoridade Palestina, fomos deixados em paz. Tratamos, no ar, de assuntos que iam desde o abuso físico e sexual de crianças, a problemas de casamentos precoces entre jovens palestinas, até a falta de respeito por pessoas com deficiências físicas. Abordamos temas como ambiente, saúde pública e planejamento familiar. Como parte da visão do presidente da Universidade Al Quds, Sari Nuseibeh, embarcamos em 1997 numa sociedade sem precedentes com a televisão educativa de Israel para produzir uma versão palestino-israelense de ?Vila Sésamo?. O programa foi produzido com a finalidade de ensinar a crianças tanto israelenses como palestinas respeito mútuo e tolerância.

"Liberdade de expressão e a apresentação de opiniões diferentes sobre questões sociais, econômicas e políticas eram os nossos objetivos. Sentíamos firmememente que estávamos assentando os tijolos de uma sociedade coesa e progressista que seria o fundamento de um estado independente.

"Nada disso era fácil diante da ocupação israelense. Ainda assim, nos recusamos a ceder ao desespero. Na mais recente incursão israelense demos o melhor de nós mesmos para continuar com o nosso trabalho, apesar da missão praticamente impossível de manter uma TV educativa em tais tempos. Tanques circulavam em volta de nossa cidade, nossa equipe estava sob toque de recolher e estávamos separados uns dos outros a não ser pelo telefone. O fato de nossa emissora ficar na periferia da cidade poupou-nos durante os primeiros dias da incursão. Continuamos a levar ao ar uma mistura de mensagens de utilidade pública (por exemplo, exibindo os números de telefone de serviços médicos), mais programas como a série que produzimos com o Unicef para ajudar pais e crianças a lidar com o trauma da violência.

"Então, na terça-feira [2/4/02], soldados israelenses vieram ao prédio de quatro andares da Faculdade de Profissões Médicas, onde se localizavam os nossos estúdios, e começaram a destruir o que havíamos trabalhado para construir. Todos as salas dessa instalação educacional foram arrombadas e o equipamento, destruído. Os dois membros remanescentes de nossa equipe que punham a emissora no ar foram mantidos presos durante quatro horas antes de serem soltos.

"Durante o seu aprisionamento, viram câmaras de TV e arquivos de vídeo de valor incalculável serem lançados do quarto andar, onde estavam os nossos equipamentos e estúdios.

"Felizmente, nem a minha família nem a nossa equipe foram feridas fisicamente. Perto do que aconteceu a outros, devemos ser gratos ao nosso destino. Mas o que aconteceu não foi apenas destruição de propriedade, mas uma tentativa de destruir nosso sonho de construir uma TV educativa útil e de ajudar a erguer um Estado viável com saudáveis instituições cívicas.

"Não será fácil recolher os escombros depois de passar por tamanha brutalidade. Não tenho dúvida de que reconstruiremos a nossa emissora e recuperaremos a esperança que tínhamos cinco anos atrás. Ao mesmo tempo, confio em que o nosso povo, com o apoio da comunidade internacional, se levantará da dor e lançará as fundações de uma sociedade que possa viver em paz com os seus vizinhos." [Pela tradução, L.W.]

(*) Jornalista