JORNALISMO E CALÚNIA
Luiz Martins (*)
A imprensa brasileira ainda não aprendeu por inteiro a lição da Escola Base, o mais notório caso de calúnia já acontecido no país. E qual seria essa lição? Ora, a receita lógica, embora faça parte do senso comum, encontra respaldo em qualquer livro de metodologia, dos mais simples aos mais complexos, como é o Conhecimento objetivo, do lorde Karl R. Popper, que recomenda: compete ao investigador duvidar dos seus achados, para verificar se realmente eles resistem ao desafio da negação.
O problema é que a imprensa, mesmo tendo como matéria-prima uma essência chamada por Adelmo Genro Filho em O segredo da pirâmide [jornalística] de "singularidade", ou seja, o incomum, o insólito, o improvável, não raras vezes aprisiona-se pelo patético, esquecendo-se do benefício da dúvida que todo fato merece, pelo menos os mais escabrosos.
O caso Escola Base, embora vastamente divulgado e discutido, até virou livro ? do jornalista Alex Ribeiro ?, foi, vale a pena repetir, a acusação nacionalmente veiculada, mas, falsa, de que diretores e professores de uma escolinha de São Paulo promoviam bacanais com as crianças sob sua tutela. O educandário ruiu e, com ele, a vida afetiva e psicológica dos acusados. As modestas indenizações foram pagas pelo governo de São Paulo, já que, supostamente, a culpa não foi da imprensa, induzida a erro por um delegado de polícia. Há, no entanto, uma teimosa pergunta que não se cala: mesmo quando a fonte é de fé pública, não se deve checar a veracidade da informação?
Brasília também viveu, ressalvadas as proporções e circunstâncias, um caso parecido, desta feita, com duas fontes de altíssima fé pública: um médico e um delegado. Acusação: um pai havia [em 6/5/2003] abusado sexualmente do próprio filho, um bebê de 4 meses. Ao examinar a pequena vítima, com sintomas de asfixia, o médico de um posto de saúde do Novo Gama, satélite da cidade-satélite do Gama, notou lesões anais. Mas, em vez de suspeitar de assaduras, absolutamente comuns nessa fase da vida, preferiu acionar logo a polícia, para que o jovem pai fosse preso, ali mesmo, sem qualquer processo formado, como se o suposto atentado violento ao pudor tivesse acontecido às suas vistas. Na cadeia, onde passou 12 dias, o pai acabou confessando, primeiramente à polícia; depois, à imprensa. E, mais uma vez, a imprensa caiu num conto macabro, de olhos vendados, ou, quem sabe, se a venda fosse retirada perder-se-ia a densidade do valor-notícia.
Duas semanas depois, sairia o laudo: morte por asfixia, provavelmente, causada por mamadeira, outro cuidado muito importante para essa fase da vida: bebês se engasgam ou inalam inadequadamente o leite das mamadas que, por vezes, vão encharcar os tenros pulmões. Por tal descuido, o pai foi acusado de homicídio, mas, de uma culpa mais branda: homicídio culposo, já que teria sido, ainda que involuntariamente, responsável pela morte do filho. Terá sido mesmo? Ou alguma ele aprontou, de qualquer maneira? Senão, por que confessou um crime não praticado, tanto à polícia quanto à imprensa, que divulgou fartamente o caso [6 e 7 de maio]? Inocentado por um laudo pericial de causa mortis, o acusado disse que confessara porque ficara em pânico ante a possibilidade de vir a ser estuprado na cadeia, castigo que em geral os detentos impigem a essa categoria de criminoso. Havia entendido que, se confessasse voluntariamente a culpa escaparia de tal fatalidade.
Sentença indenizatória
Como poderia a imprensa duvidar da veracidade de uma calúnia, se as fontes eram de fé pública? O que fazer quando a informação inverídica parte das autoridades? Um dos problemas atávicos da imprensa brasileira, já diagnosticado por instituições que lidam com assuntos relacionados à infância e à juventude, como é o caso da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi), é o de que repórteres que vão a delegacias apegam-se demais a uma garantia frágil, o BOP: Boletim de Ocorrência Policial. Trata-se, realmente, de uma "fonte primária", no sentido usado pelos historiadores, mas, primaríssima, em matéria de qualquer processo de investigação feito com alguma seriedade.
Estaríamos diante de um beco sem saída? Se as autoridades, a quem competem a investigação, a perícia e os laudos, erram, como a imprensa não pode ser por elas induzida a erro? Nesses casos, só restaria à imprensa a possibilidade do erro? Quem sabe a imprensa brasileira, nesses tempos ligeiros como nunca, não tem mais tempo para a prática da reportagem? Repórteres e editores parecem preferir a superficialidade da notícia à reportagem, gênero mais árduo, mas de resultados mais consistentes. Não seria esperar muito de repórteres que, nesses tempos mercuriais, mal têm tempo para safar-se da pauta e já vem outra, como numa corrida de obstáculos?
Certa vez, quando a polícia convocou a imprensa para apresentar em coletiva o oficial de chancelaria aposentado Jorge Mirândola como o terrorista autor da carta-bomba que dilacerou as mãos de uma diplomata do Itamarati, tal fato não mereceu o benefício da dúvida. Foi preciso que um garoto da periferia de Brasília, que sabia quem era, de fato, o bombista, adquirisse força maior do que o medo e apontasse o verdadeiro culpado, ainda mais vendo um inocente no pelourinho, publicamente acusado e com a imagem em todo o noticiário.
Certa vez, a imprensa não duvidou da versão fabricada de que aquele maestro que formou uma orquestra de criancinhas na caatinga de Pernambuco também abusava delas, nos bastidores dos ensaios. O caso evoluiu de tribunal em tribunal, até chegar a instâncias superiores e, em todas elas, o jovem músico foi inocentado: as provas haviam sido grosseiramente forjadas por políticos enciumados do prestígio súbito de alguém que vinha tocar para o presidente da República, no Palácio da Alvorada, e ainda excursionava pela Europa mostrando talentos infanto-juvenis ? mas, sem promover o humilde município de São Caetano, a cento e poucos quilômetros do Recife.
Certa vez, a imprensa não duvidou do trabalho da polícia, quando esta apresentou nove suspeitos do crime do Bar Bodega, a fatídica choperia onde um casal de dentistas foi assassinado durante um assalto. Fotografados e expostos com aquelas plaquetas de indexação de criminosos pobres, as vítimas recolheram-se a seu cotidiano periférico, de infortúnio, pobreza e esquecimento. Sim, porque a imprensa não tem muito tempo e espaço para retificações, retratações e reparações, a não ser quando ouve a sentença indenizatória, o que só ocorre em raríssimas ocasiões. Em geral, os inocentes preferem mesmo o silêncio e o anonimato a remexer seus traumas nos foros da Justiça.
Credibilidade e empregos
No Distrito Federal, um obstetra preferiu o silêncio a argüir judicialmente a acusação de erro médico, do qual teria decorrido um natimorto. Foi absolvido pelo Conselho Federal de Medicina, que considerou corretos todos os procedimentos adotados. A mãe, no entanto, em meio a tantas dores, preferiu transferir seu infortúnio à autoria de outrem: formulou a hipótese de que o médico, ao constatar que havia demorado demais para optar pela cesariana, empurrara de volta o feto, para só então adotar o método pelo qual César veio ao mundo.
E, assim, vão-se passando os tempos e as lições ficando velhas, nem por isso inválidas. Amanhã, novas denúncias, novas manchetes e a velha desculpa: perdão, leitores, fomos induzidos a erro. Seria também um erro, ou exigir demais, que a imprensa tenha um pouco mais de cuidado quando estiver diante de acusações tão pesadas, como essa de um pai abusar sexualmente do próprio filho? Médicos apressados, delegados apressados, notícias apressadas.
Alguma coisa há de acontecer para que esse círculo vicioso não se perpetue. Uma exaustiva investigação não precisa demorar nove meses, mas, convenhamos, as barrigas jornalísticas têm sido cometidas ao ritmo da onda digital. Lembram-se daquela cobertura de um comício de José Serra na cidade de Palmas, capital do Tocantins, veiculado por uma agência de notícias, sem que o candidato tucano tenha estado lá? E, agora, mais uma novidade, aliás, nem original é: repórteres inventando reportagens. Deu até no New York Times, outro dia, quando da constatação de que a maioria das matérias do repórter Jayson Blair era ficção. Mas, em 1981, a repórter Janet Cook não inventara uma criança viciada em heroína? Teve, evidentemente, de devolver o Prêmio Pulitzer, o oscar americano do jornalismo.
No caso de calúnias, o que a imprensa brasileira tem devolvido às vítimas e aos leitores? Em geral, minúsculas notas em canto de página: "Erramos". Agora, em nova versão: "Fomos induzidos". Repórter não pode ser induzido nem abduzido, sob pena de se acabar a credibilidade. Ou os empregos.
(*) Jornalista, coordenador na Universidade de Brasília do projeto de extensão SOS-Imprensa, de utilidade pública, em casos de erros, abusos e vítimas <sosimpre@unb.br>