ANTONIO CARLOS MAGALHÃES
O jornalista e escritor João Carlos Teixeira Gomes, 64 anos, nascido em Salvador (BA), fez história na imprensa baiana também por ter ousado enfrentar, durante a ditadura militar, o todo-poderoso Antonio Carlos Magalhães, à época já uma espécie de vice-rei da Bahia com o beneplácito dos generais de plantão. Entre 1969 e 1975, em plena vigência do regime de exceção imposto pelo Ato Institucional nº 5, o atual senador pelo PFL da Bahia – então prefeito biônico de Salvador e depois "eleito" governador da Bahia pelo voto indireto – fez das tripas coração para enquadrar Teixeira Gomes na Lei de Segurança Nacional e destruir o jornal que este dirigia, o Jornal da Bahia – de oposição ferrenha aos métodos escusos e ações truculentas do político baiano.
A história desse embate está contada no livro Memórias das trevas – uma devassa na vida de Antonio Carlos Magalhães, lançado na segunda quinzena de janeiro pela Geração Editorial e secundado por tênue repercussão na mídia. Nele, o autor baseia-se na trajetória política de ACM para desvendar o que chama de "essência perversa da opressão".
João Carlos Teixeira Gomes é professor de Literatura Brasileira e de Jornalismo na Universidade Federal da Bahia. Foi amigo do cineasta Glauber Rocha, sobre o qual escreveu uma biografia definitiva – Glauber Rocha, esse vulcão. Também poeta e crítico literário, é membro da Academia de Letras de Salvador e autor de oito outros livros, entre os quais Gregório de Matos, o boca de brasa (um estudo sobre a obra do poeta satírico baiano) e O telefone dos mortos (contos).
Na entrevista a seguir, concedida a
Alberto Dines, do Observatório da Imprensa, Teixeira Gomes fala da devassa que promoveu na vida de ACM e das razões que o levaram a escrever seu Memórias das trevas. (
L.E.)
Você esperava esta reação relativamente branda por parte do senador ACM? Inicialmente ele ameaçou retirar o livro das livrarias por causa da foto da capa, agora diz que não o fará embora a foto não o favoreça… É uma estratégia para abafar a repercussão?
João Carlos Teixeira Gomes – Não há reação "branda" por parte do Antonio Carlos Magalhães. Em seu jornal e em várias entrevistas ele, bem a seu jeito truculento, me tem xingado de todas as maneiras. Mas até agora não pôde negar uma sequer das suas perseguições, a enorme lista dos agredidos, a tentativa de esmagar o Jornal da Bahia e de me pôr na cadeia – numa época de tortura e morte nas prisões militares. O livro é sobretudo a crônica fiel da sua trajetória de violências. Quanto ao processo, desistiu apenas porque foi alertado de que a explosão das vendas seria incontrolável. Mas já está sendo, com processo ou não. O livro chegou a 25 mil exemplares vendidos em menos de uma semana.
Ele afirmou também que o teor do livro não feria a sua honorabilidade. Você concorda com isso?
J.C.T.G. – Depende do que ele entende por "honorabilidade". Eu estou convencido de que o livro é um espantoso registro da sua falta de ética e decoro político.
Se ele não faz carga contra o autor nem contra o teor, por que investe contra o editor afirmando que o livro foi financiado pelos desafetos do PMDB?
J.C.T.G. – Eu tenho dito e repetido que o financiador do meu livro é o próprio Antonio Carlos Magalhães. Por um motivo óbvio: tal o número de inimigos e desafetos que ele fez ao longo da sua carreira. É sem dúvida o político mais detestado deste país. Essa verdadeira legião de agredidos é o público mais apaixonado da obra. A Geração Editorial apenas teve sensibilidade para percebê-lo e está muito feliz com o sucesso, da mesma forma que eu. Quanto ao mais, não preciso lembrar que o Antonio Carlos é um mitômano incurável.
O livro foi efetivamente recusado por outras editoras? Pode citar algumas?
J.C.T.G. – O livro foi recusado por várias editoras. Umas, por medo; outras, bem poucas, porque queriam que eu o transformasse num ataque rasteiro, com o que eu jamais concordaria. Uma única, porque não teve recursos. Não lhes citarei os nomes porque considero que as acovardadas já estão suficientemente punidas pelo êxito do lançamento.
Apesar da chamada de capa na IstoÉ, pela dimensão da sua investigação e a importância das revelações seria de esperar uma repercussão bem maior. A matéria que saiu em Valor (23/1) foi praticamente enterrada sem merecer sequer uma referência na capa do caderno de entretenimento. Não chamou a sua atenção o fato de que TODAS as matérias do caderno tenham sido destacadas na sua capa, menos a matéria sobre o seu livro? Isto também faz parte de uma estratégia muito sutil de não ignorar mas também não valorizar?
J.C.T.G. – A repórter de Valor, entusiasmada com o conteúdo do livro e muito competente, Mariluce Moura, entrevistou-me durante mais de uma hora. Se a matéria foi "sufocada", é óbvio que se tratou do expediente aludido, ou seja, "de uma estratégia muito sutil de não ignorar mas também não valorizar".
Você acha que ACM tem efetivamente tanto poder sobre a imprensa ou isto é lenda? Além das relações empresariais e pessoais com as Organizações Globo, você consegue identificar laços de ACM com outros grandes empresários de comunicação? A Folha de S.Paulo, em geral tão inclinada a fazer barulho, por que razão está tão reservada?
J.C.T.G. – Antonio Carlos ganha no noticiário da mídia o espaço provocado pelas coisas estranhas. A sua obsessiva truculência tem para muitos leitores o mesmo apelo da mulher barbada, do bode de duas cabeças etc. É o fascínio da aberração e do insólito. Não podemos esquecer, contudo, de que há longo tempo ele vem mantendo com a chamada "grande imprensa" uma relação de troca de favores e beneficiamentos ardilosos. Às vezes, um circuito de corrupção que encontrou exemplo maior no caso NEC. Os jornais que controlaram o noticiário sobre o meu livro obviamente estão agindo contra os interesses dos leitores, pois a obra é um sucesso editorial e merecia acolhida bem maior. Uma coisa curiosa vem acontecendo: as rádios e as publicações pela internet me solicitam bem mais do que os jornais.
E com jornalistas? Em Notícias do Planalto, Mario Sergio Conti fala num "pacto de sangue" de ACM com o colunista Elio Gaspari. Você investigou esta questão? Nos anos 80, nas principais redações, sabia-se que ACM hospedava em hotéis de Salvador, nos finais de semana, jornalistas e suas famílias. Era uma "boca livre" muito conhecida e badalada. Você conseguiu dados a respeito?
J.C.T.G. – Quando o Conti publicou seu livro, minhas memórias estavam prontas e eu buscando editor. Desconheço, portanto, esse livro menor, uma mera codificação de fatos ultrapassados e já sabidos. Quanto à "boca livre" de jornalistas importantes de Rio e São Paulo na esplendorosa casa de veraneio do Antonio Carlos na Penha, em Itaparica, é bem conhecida dos baianos. Faço uma alusão ao fato em meu livro. Integrava um esquema de envolvimentos.
Você poderia minuciar as relações pessoais e empresariais de ACM com o Grupo Globo?
J.C.T.G. – As pessoais ele próprio destacou, quando dirigiu uma carta aos filhos do Roberto Marinho, no momento em que a Globo divulgou a diatribe da Nicéia Pitta, ao insinuar que era conselheiro do jornalista-empresário em assuntos íntimos. As empresariais se tornaram notórias em todo o Brasil após o escândalo do caso NEC, quando beneficou a Globo para receber em troca a programação da emissora e usá-la na Bahia para esmagar adversários.
O passado de ACM como jornalista deu-lhe este traquejo para lidar com a imprensa com tanta maestria?
J.C.T.G. – Antonio Carlos não é nenhum mestre em lidar com a imprensa, mas provoca interesse por ser uma fonte de notícias desde quando vive bisbilhotando a vida política para preparar seus dossiês contra desafetos. Jornalista, também, nunca chegou a ser, pois trabalhou pouco tempo nos Diários Associados em Salvador apenas para travar relações com políticos e bajular Antônio Balbino e Juraci Magalhães.
Você vê algum perigo de cartelização no processo jornalístico brasileiro?
J.C.T.G. – Claro que há esse perigo e, aliás, já está em curso. Ainda é embrionário, mas o garrote dentro das redações, onde se pensa agora por ordem unida, é um caminho para facilitar o gigantismo empresarial em marcha. Lembremos que os jornais tradicionais estão deixando de ser das grandes famílias pela invasão de gente que não é do ramo – tendência nova na imprensa brasileira. Trata-se de um perigo enorme para a imprensa escrita.
Paralela a esta cartelização você consegue identificar outros mecanismos de controle? Há reclamações – já veiculadas no Observatório – de pequenas "máfias" profissionais fazendo a ponte entre diferentes veículos e até escolhendo quem pode ser contratado e quem deve ficar no ostracismo. Por coincidência uma destas máfias – a maior – tem ligações profundas com o senador ACM.
J.C.T.G. – Tais mecanismos de controle começam a derivar-se dos interesses da globalização e do esquema neoliberal. A tendência é que somente sobrevivam entre os profissionais aqueles que capitulem e se acomodem. Esse processo obviamente interessa a um político ambicioso e sem escrúpulos como Antonio Carlos.
E o relacionamento de ACM com jornalistas baianos? Alguns jornalistas e empresários baianos tentaram enfrentá-lo. Ocorre-me o nome de Paolo Marconi e João Falcão. O que lhes aconteceu?
J.C.T.G. – Restaurando métodos que empregou na ditadura, Antonio Carlos agora tenta esmagar A Tarde, como o fez contra o Jornal da Bahia. Paolo nunca teve expressão como oposicionista e João Falcão, que vendeu traiçoeiramente o Jornal da Bahia ao próprio Antonio Carlos, nunca teria existido sem a presença forte de João Carlos Teixeira Gomes, o líder da resistência. Fatos são fatos.
E com você? Afinal, este seu livro não é obra de circunstância: como é que você tem conseguido enfrentar o "carlismo" há tanto tempo? E como será no futuro?
J.C.T.G. – Com efeito, meu livro não é obra de circunstância, mas um estudo denso e profundo sobre a tirania. Eu sou um rousseauniano e entusiasta do pacto social no seu mais alto sentido. A sociedade não delega poderes a déspotas, mas sim a líderanças que deseja esclarecidas e preparadas para promover o bem comum. A tirania é uma enfermidade social. Tenho encontrado uma enorme energia dentro de mim para enfrentar essa coisa odiosa e antinatural que é o "carlismo", ao lado de um quixotesco espírito de sacrifício. Isto se deve ao fato de que, além de rousseauniano, eu sou também um glauberiano e um gregoriano (não do papa Gregório, mas de Gregório de Matos – que, aliás, está fazendo muita falta hoje à Bahia).
A imprensa baiana (que já foi uma das melhores) tem condições de desenolver-se enquanto ACM dominar o cenário local?
J.C.T.G. – Não tem. Tanto é assim que o pasquim do Antonio Carlos, o Correio da Bahia, não tem leitores, e A Tarde está sendo perseguida. Em relação ao Correio, acontece normalmente um fato incrível: publica a coluna da Dora Kramer, mas, quando ela critica a irracionalidade do Antonio Carlos, o que vem sucedendo com freqüência, passa o cacete na Dora, numa nota de pé de página. Quer dizer: um jornal agride e desmoraliza a colunista que ele próprio acolhe. Antonio Carlos entende isto como expressão da liberdade de imprensa.
Como é que os artistas e intelectuais baianos se colocam frente ao "carlismo"?
J.C.T.G. – Existe uma aderência repugnante de alguns artistas bem conhecidos ao "carlismo", além das relações espúrias entre o carnaval baiano e o poder político, por interesse mútuo. O carnaval baiano deixou de ser há muito tempo aquela coisa espontânea e pura dos primeiros trios elétricos. Não cito nomes porque ainda acredito na recuperação moral dos colaboracionistas (ou, como diziam os franceses da França ocupada, os collabos).
Será possível separar o orgulho baiano do "carlismo"? Esta é a arma de ACM para manter o seu poder?
J.C.T.G. – O orgulho baiano repudia o "carlismo". O Antonio Carlos só cresceu com a ditadura, quando não havia eleições, e, até a experiência fracassada de Waldir Pires, jamais ganhou uma eleição para a prefeitura de Salvador. Sua força na Bahia foi durante muito tempo uma criação irresponsável da mídia sulista. A arma que ele tem usado há anos para se manter no poder é a violência aliada à bajulação aos mais poderosos do que ele. Dessa simbiose retira sua força. Também da covardia dos adversários.
Você menciona o marechal Castelo Branco como a pessoa que projetou ACM na cena política. Que papel o general Golbery desempenhou neste lançamento?
J.C.T.G. – Ele insinuava sempre ter muita intimidade com o Golbery, mas brigaram por causa do Paulo Maluf e Antonio Carlos acusou o general de ter criado a alcunha de "Toninho Malvadeza", o mais ajustado dos epítetos. Mas não foi Golbery: foram os baianos massacrados, numa vingança inspirada.
O falecido Luis Eduardo operava do jeito do pai? Como era o seu relacionamento com a imprensa?
J.C.T.G. – Luís Eduardo Magalhães publicamente era um político cordial e – dizem – nos bastidores, um bom articulador. Não queria governar a Bahia, pois sua vocação era o Parlamento. Cedeu às fortes pressões emocionais do pai. Morreu cedo demais para que pudesse ter definido melhor seus caminhos.
No livro você trata de questões ideológicas e conceituais. Como classifica ACM numa análise política mais ampla? Ele é um fascista, um caudilho populista, um conservador?
J.C.T.G. – Antonio Carlos é um instintivo político, com uma enorme sede de poder – fato que confessou à revista Playboy número 13l, de 1986. Conceitos teóricos ou refinamentos conceituais lhe são indiferentes. Já confessou ter ganho as eleições de 1982 na Bahia "com o dinheiro numa mão e o chicote na outra", conforme noticiou Ricardo Noblat no Jornal do Brasil. A frase o explica e define o seu papel político. É o único coronel urbano da política brasileira, em linha de choque com a tradição rural do coronelismo nordestino, que teve em Lampião o seu herói outsider. Lampião foi um coronel às avessas, portador da mesmo malignidade dos latifundiários do cabresto e do voto marcado. Muito mais autêntico, porém, do que todos eles.
ACM encarna o PFL? Você o distingue politicamente de um Marco Maciel?
J.C.T.G. – Marco Maciel é um reacionário fino (sem trocadilhos ou ambigüidades). Antonio Carlos é um reacionário vaidoso e truculento.
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