Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A ditadura do helicóptero

ANTINOTÍCIA

Nelson Hoineff (*)

Um acidente nas ruas de São Paulo. Deve haver feridos. Pode haver um morto. Talvez mais do que um. O helicóptero já está chegando ao local, vamos logo, logo saber a extensão da tragédia. Agora sim, estamos nos aproximando, o comandante buscou a melhor posição… não parece haver mortos estendidos no chão. Nem um sequer. Pode não haver morto algum, graças a Deus. Mas certamente haverá muitos feridos. Vamos chegar mais perto para ver melhor. Visto daqui, agora, não é muito certo que haja feridos. Mas vamos ficar atentos. É uma sorte que ninguém tenha morrido, mas um acidente desse tipo geralmente resulta em feridos. As informações eram de que um ônibus havia sido atingido por um caminhão de lixo. O caminhão de lixo não está mais no local. O ônibus pode ser aquele se dirigindo à Marginal. Vamos tentar acompanhá-lo. Se for, deve ter saído ileso do acidente. Ou o que parece um acidente. Porque parecia um acidente; de longe parecia mesmo. Havia vários carros parados em volta do local, ali próximo à ponte. Pode ser que os carros tenham parado por outra razão. Você está vendo algum ferido daí? Tudo está muito tranqüilo agora. Talvez não tenha havido acidente. Mas tudo indicava. As ruas de São Paulo estão mesmo muito perigosas. Alguém tem que fazer alguma coisa.

A arte da antinotícia ganha contornos inéditos na televisão brasileira. Estimula o varejo no horário de acesso, aquele que vai desembocar no telejornal e na novela que segue-se a ele.

Intempestivamente, o apresentador Luiz Datena sai da Record e estréia no dia seguinte na Rede TV!. Os jornais falam em 350 mil reais por mês. 350 mil reais de salário na Rede TV!? O lugar de Datena é imediatamente preenchido por Nei Gonçalves Dias e sua imbativel agilidade para encher lingüiça ? que pessoalmente usei durante a interminável meia hora em que o avião carregando o corpo de Tancredo Neves taxiava na pista, em abril de 1984, e que parece cada dia maior. Nei já não alcunha Boris Casoy de "a grife da notícia", o que deve dar alguma tranqüilidade ao âncora da Record. Na Band, os passos de Datena já vinham sendo seguidos há algum tempo pelo Roberto Cabrini, no Brasil Urgente.

Ao vivo

Nos céus poluídos de São Paulo, vários helicópteros ao mesmo tempo estão disputando o espaço aéreo em cima e o vazio total em baixo. Nunca tantos buscaram o nada ao mesmo tempo. A divertida fórmula dos "jornalísticos" de acesso acaba estimulando a cumplicidade entre apresentador e espectadores para que desta vez a informação não esteja tão despropositada assim, para que o acidente seja verdadeiro e, se possível, haja mortos ? pelo menos um mortinho só, que não vai fazer diferença entre tantos, mas que precisa, tem que morrer, entre 18h e 19h, de preferência mais perto das 19h porque as pessoas estão chegando em casa e a base de espectadores começa a crescer. E é a hora em que o helicóptero está voando com o link.

A ditadura do helicóptero deixa claro que é nessa faixa de horário que as coisas têm que acontecer. A permuta é cara e a notícia tem que acompanhar a engenhoca voadora, esteja ela onde estiver. Depois, tudo serena, porque a programação segue normal e a brincadeira com o "ao vivo" acabou.

É a única tendência na TV que disputa a moda com os reality shows. O helicóptero que espera a noticia, fornece as senhas necessárias ao assaltante que quiser entrar ao vivo e possivelmente em três redes ao mesmo tempo. Quanto mais igual, melhor, porque no fundo as emissoras não têm vontade de ser diferentes; só não podem correr o risco de errar sozinhas.

(*) Jornalista e diretor de TV