Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A educação contra a TV-lixo

O MINISTRO E A TELEVISÃO

Marinilda Carvalho

Em entrevista aos repórteres Sylvie Kerviel e Daniel Psenny, publicada na edição de 10 de agosto do diário francês Le Monde <www.lemonde.fr>, o ministro francês Luc Ferry, da Juventude, da Educação Nacional e da Pesquisa, surpreende por suas idéias contra a correnteza: em vez de criticar, como a maioria dos educadores, o papel "emburrecedor" da televisão, ele gostaria de ter na TV uma aliada dos professores e um estímulo ao aprofundamento dos conhecimentos. Ao contrário também da maioria, não acha os reality shows tão perigosos, e coloca nas mãos do poder público a solução para a invasão da TV por programas de baixa qualidade. "A elevação do nível cultural dos jovens é um objetivo prioritário. Quando temos a chance de compreender realmente o sentido de uma grande obra, seja literária, filosófica ou artística, não nos deixamos enganar pela TV-lixo."

Luc Ferry, 51 anos, foi ele mesmo uma surpresa no gabinete do primeiro-ministro Jean-Pierre Raffarin, que está completando 100 dias de governo: não é político nem técnico da educação, antes um educador. Não se considera nem de direita nem de esquerda, antes um republicano centrista, moderado. Filósofo e cientista político, estava desde 1993 à frente do Conselho Nacional de Programas, organismo encarregado de reformar os currículos escolares franceses, e foi mantido no cargo pelos sucessivos ministros socialistas. No ministério, suas prioridades serão a luta contra o iletramento [grave preocupação de autoridades educacionais européias, dada a baixa capacidade da população de apreender conteúdos], a valorização do ensino profissional e a consolidação da autoridade do professor.

Alguns de seus livros são best-sellers ? como La Pensée 68 (Gallimard), co-escrito com Alain Renaut; L’Homme-Dieu ou le sens de la vie e Le Nouvel Ordre écologique (Grasset), Qu’est-ce que l’homme (Odile Jacob), com o biólogo Jean-Didier Vincent. Querido pela mídia (Le Monde o descreve como "brilhante"), Ferry publica artigos em L’Express, Le Point, Challenge, e faz sucesso na imprensa tipo Caras: recentemente apareceu nas páginas de Paris Match e Le Figaro Magazine com a mulher e os filhos. É muito visto na televisão, porque fala de assuntos complicados em linguagem acessível.

Ao contrário da maioria dos intelectuais, Ferry não despreza a televisão. Pelo contrário, confessa que gosta do veículo. Ele mesmo já comandou no canal France 3, em 1997, com Alain Etchegoyen e Sylviane Agacinski (mulher do ex-premiê Lionel Jospin), o programa Grain de philo, revista de iniciação à filosofia. Ministro, não tem mais tempo de ver TV, mas via muito. "Não sou hostil à televisão, honestamente, vejo de tudo um pouco", diz. "Não faço parte dos intelectuais anti-TV, confesso até que às vezes sinto que há programas interessantes demais para ver, sobretudo tarde da noite."

Ferry diz concordar com o ministro da Cultura, Jean-Jacques Aillagon, que convocou a TV pública "a cumprir seu dever". Perguntado se vê diferença entre a TV privada e a pública, Ferry responde: "É claro, mas acho que a pública também deve ser atraente". E acrescenta: "Quando trabalhei com Jean-Pierre Cottet na France 3 ? hoje, presidente da France 5 ?, ele usava uma metáfora que considero feliz. A missão do serviço público, dizia, é como a de um pescador que usa uma linha muito fina para pegar o maior peixe possível. Isso quer dizer que se deve ir o mais longe possível na cultura dita difícil, mas sem arrebentar a linha, sem perder o público".

Há anos se assiste ao debate sobre a concorrência entre a imagem e a escrita, diz Ferry, que a imagem teria uma lógica do imediatismo, da emoção e da sensibilização, enquanto a escrita desenvolve o distanciamento, a reflexão e a inteligência. A televisão não permitiria ver a lógica por atrás das imagens. Esta análise, prossegue Ferry, que tem sua parcela de coerência e encontra em geral um grande eco, parece superficial.

"A função da televisão não é substituir um curso na Sorbonne, menos ainda substituir os livros", diz Ferry. "É antes de tudo um espetáculo, e o espetacular, contrariamente às idéias vigentes, não é forçosamente oposto à inteligência. A função da TV é ser a chama que acende o pavio, o ponto de partida de uma informação que deve nos incitar a ver mais de perto, a aprofundar com os livros."

Como exemplo, Ferry cita as guerras do Golfo e dos Bálcãs. "A televisão não descerebrou os cidadãos", diz. "A verdade é que aquelas imagens nos obrigaram a nos debruçar sobre o Atlas e sobre os manuais de história para localizar a Eslovênia ou o Iraque. O grande público quase nada sabia sobre esses países." Para ele, a televisão ensina coisas, "não do modo tradicional, claro, que ela jamais poderia substituir o ensinamento tradicional, mas nos convidando a ir mais longe, a recorrer à escrita", afirma. "Penso especialmente em programas como La marche du siècle (France 3), de Jean-Marie Cavada, já falecido."

A função de tal programa, continua Ferry, não era substituir um curso de História no Collège de France ? nunca! ?, mas de estimular o telespectador à reflexão. O que conta não é tanto o que ocorre durante o programa, mas o que se passa depois, nas famílias. Neste sentido, não há uma oposição inevitável entre a imagem e a escrita, muito ao contrário, acredita.

Responsabilidades da família

Mas a TV não tende a caricaturizar ao extremo o pensamento?, perguntam os repórteres. "Sim e não, é mais complicado", responde Ferry. Sim, porque ela está sempre mais ou menos na lógica do divertimento, senão a linha arrebenta. Não, porque ela pode provocar efeitos que ultrapassam de longe o próprio programa. "O verdadeiro problema é o que eu chamaria de ?a escrita televisiva?. Pessoalmente, reconheço, nunca encontrei nos meus programas sobre filosofia a medida certa, que correspondesse exatamente ao que eu tinha vontade de fazer. Foi por isso que parei. É culpa da televisão? Não tenho certeza. Simplesmente é muito difícil fazer filosofia com esse aparelho. Lembro da televisão educativa em preto e branco, com os maiores pensadores da época, Michel Foucault, Paul Ricoeur e tantos outros, e também não funcionava", diz Ferry.

Como a TV pode desempenhar um papel educativo? "O maior programa ?cultural? continua sendo, a meu ver, Apostrophes (France 2), de Bernard Pivot", diz Ferry. "Ele tem algo de gênio, conseguiu fazer ler livros todo tipo de gente que não o faria sem ele", prossegue. "Pivot jamais arrebentou a linha com o telespectador. Se se oferecem programas intelectuais tediosos às 20h30 consegue-se o efeito inverso ao desejado, porque as pessoas vão imediatamente ver outra coisa. Pivot não propunha coisas ao mesmo tempo difíceis e tediosas."

O ministro cita seus programas favoritos, todos de nível, registre-se: "Hoje encontramos outros programas interessantes, como Culture et dépendance (France 3), de Franz-Olivier Giesbert, ou Campus (France 2), de Guillaume Durand, ou ainda o programa de vulgarização científica E = M6, excepcionalmente bem feito. De vez em quando gosto de ver Rive droite ? Rive gauche, no Paris Première. Thierry Ardisson é um dos melhores entrevistadores atuais. Prepara bem suas entrevistas e sabe pôr você à vontade".

O ministro diz desejar que alguns programas se aproximem mais dos temas curriculares. "Há muito a ser feito em termos de televisão cultural e educativa. Por exemplo, raramente vi algo tão bonito quanto o Dom Juan de Marcel Bluwal. Poderia muito bem ser usado em classe, como certos documentários. Há coisas notáveis no canal Histoire. Mas há obstáculos jurídicos, em termos de direitos. O canal France 5 trabalha nisso, e uma comissão foi criada no ministério para, em breve, autorizar certos programas."

O que o senhor pensa da invasão dos reality shows?

"É verdade que às vezes são tragicamente nulos. Dito isso, não creio que sejam assim tão perigosos como dizem. Para as crianças, Loft Story foi uma espécie de curso de educação amorosa transmitido ao vivo. Lembro de uma conversa entre Loana e uma outra moça sobre um rapaz que, elas garantiam doutamente, ?beijava muito bem?. Tenho certeza de que para muitos adolescentes foi uma informação de primeira grandeza.

"O que me parece grave é a confusão de categorias. Há perigo quando se imagina estar assistindo a uma representação de forte valor cultural, quando se trata de lixo. Isso me preocupa sempre quando as pessoas vêm de ambientes pouco favorecidos culturalmente. Mas, como sou um democrata, creio que o público em geral é bem inteligente para se dar conta de que Loft Story não é tão genial assim. Eles têm perfeita consciência de que estão assistindo a uma idiotice, e duvido de que realmente tomem Doc Gyneco por Mozart…"

A ideologia veiculada pelos reality shows se articula em torno da exclusão, da humilhação, comentam os repórteres. "É insuportável", diz o ministro, "mas é preciso tentar entender por que isso acontece." Para Ferry, quando se faz esse esforço, em vez de ficar numa posição intelectual elitista, percebe-se que há razões, mesmo que ruins. "Diante desta ideologia, que vocês estigmatizaram com justeza, não vejo outra resposta que não seja a própria educação. A elevação do nível cultural dos jovens é um objetivo prioritário. Quando temos a chance de compreender realmente o sentido de uma grande obra, seja literária, filosófica ou artística, não nos deixamos enganar pela TV-lixo."

"Não é por acaso", diz o ministro, "que coloquei a luta contra o iletramento entre meus objetivos prioritários. Não é proibindo esses programas que resolveremos o problema."

As crianças passam tanto tempo diante da TV quanto no banco da escola. A educação nacional não deveria aprender a decodificar as imagens?, provocam os repórteres. "É uma idéia muito boa", responde o ministro. "Nós a introduzimos em parte nos currículos. Mas, além de um certo patamar, é preciso ter competências reais para responder às perguntas dos alunos. Os professores, em geral, não são formados nisso. Se você não sabe como funcionam realmente as mídias, o que custam, como se faz etc.. você não pode falar a respeito seriamente. Não se pode pedir a um professor de História ou Literatura que se improvise em especialista de televisão ou jornal. É uma disciplina inteira à parte."

Sobre pornografia na TV, Ferry tem posição realista. "Estes filmes não são destinados a crianças. Eles dão ? e eu penso especialmente nas cenas cada vez mais cruas de estupros ? uma imagem detestável do amor e das mulheres. Eu não desejaria que meus filhos descobrissem a sexualidade com esses filmes. Mas cabe às famílias cuidar para que as crianças não tenham acesso. Esses filmes são reservados a adultos e, neste caso, nada tenho a objetar. A não ser que são terrivelmente ruins.

Qual será sua política de comunicação, como ministro? "Falar o menos possível. Ir à TV quando houver realmente algo a dizer, uma política a explicar. Não me verão nos programas de divertimento. Não é uma questão moral, mas de rigor intelectual mínimo."