MÍDIA & GOVERNO
Ivo Lucchesi (*)
O ano em curso se tem revelado generoso para quem assume o ofício de refletir e analisar as nem sempre claras relações entre sistema midiático e esfera governamental. Ao longo de quase nove meses da atual gestão, farto elenco de situações permite ao observador arriscar apreciações, deduções e, por que não, ilações. Do conjunto de coberturas, pode-se extrair que a mídia mantém com o atual governo um certo clima de enlace amoroso, descontadas, lá e acolá, breves e suaves alfinetadas que, afinal de contas, fazem parte em qualquer relacionamento mais íntimo. Como sobre outras situações um tanto distanciadas no tempo já, em artigos anteriores, me pronunciei [remissões abaixo], o foco, para os limites deste artigo, apenas recairá em ocorrências recentes.
Relações suspeitas
De propósito, deixei que se passassem semanas a fim de dar tempo suficiente a possíveis desdobramentos jornalísticos, o que efetivamente não se verificou. Refiro-me à longa entrevista exclusiva que o presidente da República concedeu ao programa Fantástico, exibido pela Rede Globo. É, no mínimo, estranho o fato de o presidente, passados oito meses da posse, não haver franqueado à imprensa uma entrevista coletiva, embora diariamente apareça discursando nos mais singulares eventos. Eis que, por critérios ignorados, destinou, a exemplo do que já fizera, quando declarado vitorioso nas urnas, à Rede Globo sessão privativa. Na ocasião, o presidente compareceu ao Jornal Nacional; recentemente, a programa de entretenimento.
Por outro lado, ouve-se, em vários redutos, que as Organizações Globo estariam pressionando, para a nova redistribuição dos cargos ministeriais, a indicação do senador Hélio Costa (ex-repórter da Globo) para a pasta das Comunicações, a despeito da resistência encontrada na vice-presidência, por conta de incômodos estratégicos: o senador e o vice-presidente disputam as mesmas territorialidades eleitorais no estado de Minas Gerais.
Registre-se também que não menos inoportuno foi o presidente da República ostentar, durante parte da entrevista, um uniforme esportivo, com figurino personalizado, sem o cuidado de ocultar a marca (Olympicus). Com ou sem licitação, não é recomendável, pela investidura do cargo, tal exibição. Ante tais questões, a mídia oficial portou-se “elegantemente” em silêncio. Ou será que mudanças de critério tornam esses fatos absolutamente desimportantes? Bem, em assim sendo, é necessário que se comunique o perfil do novo padrão de conduta, de modo a tudo ficar esclarecido.
No realimentado empenho em frisar uma face popular(esca), ao melhor estilo “paz e amor”, o governo, na figura de seu representante máximo, promoveu mais um episódio de marketing. Apenas para refrescar a memória de quem já tenha (por hábito ou por auto-estima) esquecido, recordemos: o conjunto de rock Capital Inicial, doou uma guitarra para reverter, após leilão, em benefício ao Fome Zero. Ao que parece, a astúcia marqueteira sofreu algum abalo. O enredo em si oscila entre o risível e a indigência, embora, outra vez mais, a mídia apenas tenha cumprido o papel de registrar o acontecimento, ou seja, o “zero” da fome é também o da crítica. Todavia, não faltariam razões para o salutar exercício de uma cobertura jornalística independente:
1. O tal conjunto (de expressão frágil no contexto nacional) nunca teve tanta promoção nos principais veículos (impressos e eletrônicos), sem gastar um centavo;
2. Faturar popularidade às custas da fome alheia é uma agressão da qual o caráter humano deveria estar protegido;
3. O presidente da República prestar-se, ainda que ingenuamente, a essa estratégia acusa falta de retaguarda de bons conselheiros. É bom alertar que a índole marqueteira não reconhece limites. Ela avança ferozmente sobre tudo e todos. Se ela auxilia para ganhos eleitorais, com igual força, pode produzir perdas sensíveis;
4. Quem será o mortal que, num leilão, quererá arrematar uma inexpressiva guitarra de um não menos insignificante conjunto? E em adquirindo (quem sabe um fã mais ardoroso), de quanto o aficcionado disporá para empatar suas finanças em algo inútil, a ponto de converter-se em quantia útil para colaborar na erradicação da fome de desesperados? Enfim, que pobreza!;
5. Não bastaria, já descontado o factóide inicial do capital, promovido pelo Capital Inicial, a benevolente doação ser recebida por um dos ministros da ação social, ou ? vá lá ? pelo ministro da Cultura, dada a sua história? Como coroamento final, o nobre presidente da República ainda arrematou as atenções restantes para encenar o papel de roqueiro. Aí, a fronteira do exagero foi ultrapassada em demasia.
Como se vê, as lentes críticas da mídia andam demasiadamente embaçadas, ou a capacidade de fingimento aprimora-se em níveis preocupantes.
E, agora, o Provão
O tema em questão tanto ocupou o recente programa do Observatório da Imprensa, exibido pela Rede Pública de TV (9/9), quanto foi pauta na última edição online deste OI. Destaque-se, ao lado de outros escritos, a aguda cobrança presente no artigo de Alberto Dines [remissão abaixo].
Na edição de 13/9/03, o Jornal do Brasil estampou a matéria sob o título “Ministério da Educação prepara adeus ao Provão”. Estava ali mais um exemplo de silêncio crítico a respeito de intenções que, se efetivadas, expressam um emaranhado de ingenuidades ou falácias. O corpo da matéria trazia declarações do secretário de Educação Superior do MEC, Carlos Roberto Antunes dos Santos.
A aberração das possíveis alterações tem início no título escolhido para o projeto. A intenção deliberada de o ministério associar o sentido grego da palavra “paidéia”, também título de uma das mais importantes obras sobre o mundo grego da antigüidade (Paidéia, de W. Jaeger), ao novo projeto produziu o seguinte monstro: “Processo de Avaliação Integrada do Desenvolvimento Educacional e de Inovação de Área”. São 7 palavras + 5 conectivos. É simplesmente inacreditável! A seriedade do processo já fica avariada pelo nome de origem. Não seria mais aconselhável adotar a palavra pura? Todavia, abaixo da linha do Equador, tudo é possível…
Aqui não se trata de endossar ou refutar a validade do Provão. O problema é que, como é hábito no Brasil, em lugar de aprimorar-se algo existente, redefine-se tudo ou refaz-se tudo do zero. Assim, de recomeço em recomeço, não se sai do lugar, embora fique a impressão de que todos fazem algo. Vamos, por força do artigo, fixar a atenção em algumas declarações contidas na matéria citada e que, como texto decorado, já haviam sido expostas pelo mesmo entrevistado no programa:
a) “Agora, outros aspectos estão sendo levados em consideração, como pesquisa e extensão, além da gestão administrativa e da parte que define o credenciamento de cursos”;
b) “O provão tinha o foco principal no estudante e no curso. Isso acabava não apontando dificuldades reais da faculdade”;
c) “É muito mais abrangente uma avaliação por área do que por curso. Neste sentido, queremos avaliar quatro grandes áreas: biológicas / saúde, exatas / tecnológicas, engenharia e humanidades”.
A respeito da primeira, salvo qualquer desconhecimento do secretário de Educação Superior do MEC, os aspectos mencionados já faziam parte do modelo anterior. O Provão era apenas um dos quesitos, entre outras tantas etapas de avaliação, às quais estavam sujeitas as instituições. Sobre a segunda afirmação, supõe-se que seja um processo mais seguro para detectar deficiências justamente o método que particulariza as carências do curso em si, a fim de promover a cobrança em cada unidade. Quanto à terceira, vale o argumento usado para a segunda. O que o secretário não quer dizer é que a avaliação por áreas diminui sensivelmente o custo do processo. É, portanto, uma estratégia a mais para favorecer a política de contenção de verbas à qual todos os ministérios ficaram submetidos, desde o início do novo governo.
Sim, tudo indica que a reestruturação tem raízes no corte de gastos. Ponderemos o seguinte: há, no país, inúmeras instituições de ensino superior que funcionam apenas com um ou dois cursos. Assim, estas terão de, forçosamente, ser avaliadas pelo regime anterior. Ou serão extintas? Por fim, o dado a clarear em definitivo o caráter meramente de inspiração financeira situa-se no novo critério para avaliação dos alunos: provas por amostragem. Isto quer dizer, como afirma o secretário, que serão sorteados alunos, o que diminui expressivamente os gastos com milhares de exemplares para impressão, correção, recursos humanos e relatórios finais. Além do mais, adotar o processo de amostragem, a exemplo do que habitualmente se faz com exame de produtos, beira a ofensa.
Supõe-se que alunos, individualmente, trazem histórias particulares, com virtudes e defeitos, talentos e deficiências diferenciados. Sorte e azar, pelo visto, irão decidir o grau de rendimento desse ou daquele lote de estudantes, repercutindo na imagem de uma instituição. Sem dúvida, o procedimento sugerido é bem mais econômico, na razão direta em que se torna um assalto à inteligência.
Como conclusão, o Secretário ainda arremata:
“O estudante avaliará o professor. O professor avaliará o professor, o pesquisador avaliará o outro pesquisador. A universidade entrará num processo de avaliação, de onde sairá um documento encaminhado à comissão”.
Que maravilha! A julgar pelo processo, a universidade brasileira findará por tornar-se uma usina do imaginário fascista em que o vizinho será o fiscal do outro. Esta será a porta aberta para a profusão de degradações, mesquinharias, corporativismos realimentados e burocratização desenfreada.
Segundo parece, o “Grande Irmão”, inspirado por Orwell no livro 1984, virá aos trópicos na função de “Supra-Reitor”. Nada melhor, portanto, que encerrar o artigo com a frase-símbolo da obra aludida: “O Grande Irmão zela por ti”.
(*) Ensaísta, doutorando em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA) ? RJ.
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