Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A escola das oito

CELEBRIDADE

Deonísio da Silva

A telenovela Celebridade segue os passos do folhetim, uma invenção da imprensa. No mundo tudo é muito antigo e nada de novo acontece sob o sol, de acordo com o célebre dito do Eclesiastes.

A palavra folhetim veio do francês feuilleton, nome dado aos romances publicados em rodapés de jornais franceses. O modelo clássico foram Os mistérios de Paris, de Marie-Joseph Sue, mais conhecido como Eugène Sue, escritor francês, que o publicou no jornal Constitutionel. É de sua autoria também um livro muito citado, O judeu errante.

O neologismo foi adaptado para folhetim e chegou ao Brasil em 1830, com a publicação, sem indicação de autoria, da novela Olaya e Júlio, na revista Beija-Flor, entre 1830 a 1831. O autor teria sido Charles Auguste Taunay, sobre o qual há poucas referências. Era filho de Nicolas Antoine Taunay, que integrou a missão artística francesa chegada ao Rio de Janeiro em 1816.

O folhetim seguiu estratégia cultural traçada pela burguesia, depois de infligir à nobreza a derrota final de 1789, com a Revolução Francesa, que custou a cabeça do rei. Muitas outras cabeças rolaram depois, como sabemos, pois quem começa cortando a cabeça dos outros, pode acabar perdendo também a sua. Nos romances, mas especialmente nos folhetins, a burguesia intentou e conseguiu fazer sua ponte com o povo. Fez dele parceiro nas artes de legitimar os novos donos do poder.

Em todas as casas

Os usos e costumes são as táticas que compõem a nova estratégia. Celebridade, por exemplo, ousa mostrar que o amor pode ser exercido entre tapas e beijos. As personagens vividas por Márcio Garcia e Cláudia Abreu estão semeando a controvérsia. A deputada estadual Rosmary Corrêa reclamou de Gilberto e Braga e não escondeu sua preferência pelo autor da outra novela: "O Manoel Carlos mostrou a realidade e nos ajudou. Agora entra essa personagem que gosta de apanhar. Todo o nosso trabalho pode ir por água abaixo". Mas que trabalho ingente foi esse que uma telenovela manda por água abaixo? É tão avassaladora assim a telenovela na arte de destruir antigos valores, reprovar outros usos e costumes e impor os da nova estação?

Nelson Rodrigues certa vez escreveu que "toda mulher gosta de apanhar". Convidado a se explicar, tornou a emenda ainda pior do que o soneto de um verso só, explicou-se de um jeito que ninguém esperava, afirmando que não dissera que todas as mulheres gostam de apanhar. "Só as normais". Nelson Rodrigues emitia juízos que reprovava pelo prazer de os ver contestados furiosamente. E divertia-se com isso. "Um divertido horror", para usar uma de suas metáforas preferidas. Mas quem melhor do que ele mergulhou fundo nas patologias amorosas?

A estratégia da telenovela está dando seus frutos. Vários e bons romances foram publicados na temporada. Acabei de ler um que é um presente dos deuses. Intitula-se A margem imóvel do rio, do gaúcho Luiz Antonio de Assis Brasil, um de nossos melhores romancistas. Está no esplendor de sua forma. Preparou-se durante décadas para o ofício com o qual nos deslumbra ? a arte de narrar uma boa história. Mas a imprensa está discutindo a novela das oito. O folhetim trocou de lugar, de autor, de personagens, de linguagem, de meio. Sai a biblioteca, sai a livraria, sai a estante. Entra a televisão, que está em todas as casas. Quantas casas têm bibliotecas? Quantas casas têm livros? Quantas casas têm estantes? Todas têm televisão!

O melhor espelho

O século passado foi da televisão. O começo deste outro mostra que o latifúndio continua. É de se reprovar o meio? Não! Mas precisamos examiná-lo para entendê-lo em toda a sua extensão e profundidade. A televisão está mudando a vida dos brasileiros. Há algumas décadas. E o carro-chefe continua sendo a novela das oito.

Precisamos discutir se as influências da novela das oito são tão aterradoras a ponto de parlamentares e professores se queixarem de que assim não dá: Penélopes, eles bordam o dia inteiro para que à noite a novela das oito desmanche tudo.

O caminho com certeza é outro. Por razões demais complexas para um artigo pequeno, pobre do ensino que uma novela das oito destrói com alguns capítulos! A questão é outra: temos televisão demais e escola de menos. Com ano letivo de duzentos dias, meio período, professores mal remunerados, bibliotecas sem livros, a guerra está perdida antes de ser começada.

Que a novela das oito continue a mostrar o Brasil. Talvez seja nosso melhor espelho. A obrigação de educar é de outras responsabilidades. Precisamos com urgência recuperar a relação bunda-cadeira-hora, sem a qual nada se aprende. Ou se aprende pouco e mal.