TELEJORNALISMO
Paulo José Cunha (*)
Convenhamos: notícia pura é um troço chato. Bom é o enredo, o roteiro, a trama. Desde a mais remota antiguidade, o homem vive de enredos, enreda-se em tramóias, tragédias, romances, aventuras, desventuras. A "Odisséia", desde o título, é um grande enredo produzido pelo roteirista Homero. A Bíblia toda, velho e novo testamentos, é um grande enredo, pronto para ser encenado. As lendas indígenas, enredos perfeitos, com começo, meio e fim. Os folhetins, doses diárias de enredos que deram origem às atuais novelas. Sem esquecer os filmes, as séries, as minisséries. A televisão, veículo ideal para a transmissão de emoção, vive de enredos. Como diz Neil Gabler em seu "Vida, o filme" (que recomendo enfaticamente a quem queira entender um pouco do que nos anda acontecendo), o entretenimento conquistou a realidade.
Essa conquista se operou em todas as áreas. Observe como as campanhas políticas se espetacularizaram. Os esportes, as religiões, as próprias vidas das pessoas, principalmente as mais célebres, com suas vitórias e suas derrotas, tudo virou enredo, tudo virou espetáculo, tudo virou entretenimento. O câncer da Ana Maria Braga é servido em doses certas, desde o impacto do anúncio, em rede nacional, até o acompanhamento do drama e seu desfecho, a cura. O filho da Glória Trevi, um roteiro seguido à risca. A traição em rede nacional de Capitu, a macaca. A trajetória de Roseana, um espetáculo em processo, a vida convertida em enredo para alcançar o sucesso no último capítulo. I así pasan los dias.
Nada mais natural, portanto, do que a ficção invadir a realidade. É remota a lembrança de quando as campanhas políticas se faziam em torno de plataformas eleitorais, ponto de honra de cada candidatura. Hoje, as campanhas acontecem no plano do desempenho: ri melhor quem ri melhor. Daí para a ficção se misturar com o telejornalismo foi um pulo. Espetacularizamos e glamourizamos as reportagens a ponto de ficarem bem próximas da linguagem das novelas entre as quais se espremem os principais telejornais do país. O fenômeno acontece em escala planetária, não é exclusividade tupiniquim. Na falta de enredos consistentes para servir diariamente, que tal fabricá-los na medida certa e sob controle, para garantir a dose diária de sadismo e voyeurismo? E assim surgiram os reality shows.
Na qualidade de obras descartáveis, os reality shows são atraentes na medida em que oferecem um menu de inusitadas atrações, com gente real atuando ao vivo. A cada edição, uma dose mais alta de sadismo, picardia, radicalismo. Mas ninguém se iluda: reality show é febre terçã, paludismo miúdo, curável com os comprimidos de aralen. E nada melhor do que uma injeção de realidade pura para neutralizar a espetacularização. O bin Laden foi um dos que prestaram relevante serviço à causa. Depois daquele avião mergulhando nas torres, a fábrica de efeitos especiais de Hollywood vai precisar de muita imaginação para inventar em laboratório um troço mais impactante. Lembram-se da primeira vinda do Frank Sinatra ao Brasil? Foi um escândalo. A segunda vinda já não foi lá essas coisas. Na terceira, um engraçadinho disse que nesse ritmo The Voice ia terminar cantando nos Trapalhões…
Com os reality shows vai acontecer uma coisa parecida, porque são uma fórmula e, em televisão, quando um formato se firma é porque precisa mudar. A avidez da platéia é sempre maior do que a oferta. Algo como "se funciona, então é obsoleto". Ainda bem. O que arrepia é imaginar o que inventarão pra pôr no lugar. Um hiper-reality-show?
(*) Jornalista, pesquisador, professor de Telejornalismo, diretor do Centro de Produção de Cinema e Televisão da Universidade de Brasília. Este artigo é parte do projeto acadêmico “Telejornalismo em Close”, coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para <upj@persocom.com.br>