VASCO DA GAMA
Clayton Sales(*)
Graças a tempos árduos que os brasileiros nunca fazem questão de lembrar, mas cuja recordação é sempre um convite à reflexão sobre a democracia – falo da ditadura que perdurou no país de 1964 a 1985 –, criou-se o hábito de crucificar a TV Globo por todas as mazelas da sociedade, como se uma emissora de televisão tivesse o poder hipnótico de provocar metamorfoses coletivas totais no âmago de todos. A esquerda mais mantenedora dos velhos princípios trotskistas elegeu, entre outros vilões de suas várias dicotomias, a "vênus platinada" como alvo das críticas mais ferozes sob o argumento de que ela deturpa mentes, corações, condutas, valores, caracteres, como numa espécie de transe telepático disseminado de pessoa em pessoa, tornando-as replicantes (parafraseando o filme Blade Runner) manipuláveis a seus interesses ou aos de quem a financia.
Verdade é que a Globo sempre esteve concatenada intimamente aos mandatários do poder vigente, aliás como qualquer outra grande rede de televisão, inclusive o SBT de Senor Abravanel, aquela cuja logomarca resplandecia lépida e faceira nas camisas do Vasco da Gama, do não menos poderoso Eurico Miranda, aquele que se elegeu deputado federal não para atender à população, mas aos anseios do seu clube, segundo uma de suas infelizes porém sinceras declarações, esquecendo-se de que mesmo sem promessas tradicionais de saúde, educação, segurança et cetera, ditadas aos ventos de uma campanha eleitoral, a partir do momento em que se elege para tal função, seu papel constitucional já o obriga a contemplar a sociedade, e não a um determinado grupo de interesse, seja ele um clube de futebol. Ainda mais o Vasco, que obviamente é auto-suficiente e não precisa de contribuições advindas do dinheiro público para se sustentar.
Tem-se falado muito na influência da TV Globo na decisão do governador do Rio de Janeiro em recomendar a suspensão do fatídico jogo da final da Copa João Havelange. Até que foi feito um esforço muito interessante em atribuir culpa a outros fatores além da displicência do clube-sede da partida, mas, com ou sem o poder hipnótico da emissora, as imagens mostraram claramente que havia atendimento a feridos no centro do campo, ambulâncias e ambulâncias chegando para prestar socorro e um dirigente transtornado e obcecado pelo reinício de um jogo sem condições de acontecer. A pergunta que surge é das mais intrigantes, apesar de ser um pouco ingênua: será que se a peleja final desse torneio fosse transmitida por outra televisão a difusão do mesmo terrível acontecimento também não estaria rodeada por comentários de narradores e jornalistas apelando a alguma autoridade competente para que não haja o prosseguimento do jogo?
Qual o papel da imprensa afinal de contas? Numa situação de calamidade, na qual, por graça divina não houve mortes, mas se chegou perto, a mídia deve se manter na sua posição de passividade, sem emitir nenhum parecer de quem tem um aparato de imagens muito melhor do que os profissionais que estão na contenda dentro das quatro linhas, desfrutando de três, quatro câmeras em posições que permitem visualizar uma situação com mais abrangência e ao mesmo tempo mais detalhes?
Se a Globo estava preocupada com o horário da novela Uga-Uga isso é problema dela. O SBT não estaria aflito pelos seus folhetins mexicanos? E a Band pelos seus programas de gincanas para jovens? E a Record com seus cultos evangélicos? O fato que efervesce, mas ninguém quer admitir, é que, se houve influência na decisão de Anthony Garotinho, ela foi de muita utilidade e poupou muitas vidas de constrangimentos, mais acidentes e talvez até das mortes que não aconteceram. Os vascaínos têm feito questão de lembrar da final do Campeonato Brasileiro de 1992, onde houve acidente semelhante, este inclusive com mortes, entre Flamengo e Botafogo. Pois bem, este flamenguista acha que o mesmo procedimento deveria ter sido adotado, e se não o foi não é por culpa nem de um ou de outro clube finalista, já que o Maracanã é de administração estadual do Rio de Janeiro.
As causas das feridas
Assim como as causas daquele desmoronamento não podem ser atribuídas a nenhum dos times, diferentemente da situação atual, como têm atestado os inúmeros laudos técnicos que agora começam a elucidar a verdade sobre as condições do estádio de São Januário. Infelizmente, o governador da época não teve o respeito e o bom senso de suspender aquele jogo, até mesmo em consideração às vítimas. Garotinho, pelo menos neste episódio, tomou uma atitude sensata. Se ele o fez em virtude do poder hipnótico da TV Globo, que essa "forma alienígena de dominação da sociedade" então seja canalizada apenas para influenciar nas reivindicações por justiça social, educação, saúde, segurança pública, empregos para todos e dignidade.
Talvez a emissora carioca nunca tenha pensado nisso, mas já está na hora dessa mesma sociedade que critica, mas não perde Domingão do Faustão, No limite, as novelas, os telejornais globais, Zorra total, Intercine, Corujão etc., parar de escolher um vilão e destilar todas as suas mágoas numa televisão.
As feridas que atormentam as vidas de milhões de brasileiros têm causas muito mais sérias e profundas do que uma hipnose coletiva que normalmente gostamos de pensar que nos atinge como uma epidemia psíquica. A mídia deve ser avaliada com base em exemplos concretos, e não em exercícios de mocinho e bandido que prejudicam o próprio ato de criticar. Isso ajuda, em muitos casos, a esconder os verdadeiros "lobos maus" que existem no país.
(*) Jornalista, radialista e flamenguista (se ser cego é defender o bom senso, então preciso com urgência de um computador em braille)
Leia também
Vasco com SBT – Marinilda Carvalho
A culpa foi só dele? – Luiz Antonio Magalhães
Feitos & Desfeitas – próximo
texto
Feitos & Desfeitas – texto
anterior