CORAÇÕES & MENTES
Chico Sant?Anna (*), de Paris
O mundo aguarda para qualquer momento uma ação bélica no Iraque por parte dos Estados Unidos e da Inglaterra. Na Europa, os últimos finais de semana foram aproveitados para que os pacifistas mostrassem ao mundo que são contra à guerra. Os franceses, como os demais habitantes do mundo, vivem esta expectativa e procuram dar suporte ao governo que publicamente afirma estar disposto a usar seu direito de veto para tentar evitar a invasão americana numa região que foi o berço da humanidade.
A decisão de invadir a antiga Mesopotâmia deve sair a qualquer momento, o clima é de tensão e a mídia européia reflete intensamente esse quadro.
Apesar das idas e vindas diplomáticas em busca da paz, a guerra parece
já ter começado. Não apenas pela presença
de duas centenas de milhares de militares em solo árabe,
mas também pelo comportamento de alguns setores da economia.
No mundo do consumo, o conflito parece ser tão presente quanto
deve ser para os soldados acampados.
Assim como Bush e os falcões do Pentágono e da Casa Branca, a moda não perde tempo e mantém a capacidade de ganhar dinheiro em quaisquer circunstâncias. As mesmas ruas que foram passarela para os protestos parisienses se abrem para ampliar o clima belicista. Basta dar uma volta, abrir o olho, ficar atento. Seja nos endereços badalados dos costureiros franceses, seja nas lojas de atacadistas orientais ou mercado das pulgas (Marché aux Puces) de Port de Clinacourt, tomado por africanos, latinos e árabes.
Na passarela da moda o preto é apontado como a cor preferida dos costureiros. Já nas vitrines prevalece o cáqui, o verde oliva, o estampado camuflado. Calças, casacos, blusas, tudo com um toque de uniforme militar.
Quem não tem acesso a esses endereços encontra uma saída nas bancas populares. No mercado das pulgas os uniformes utilizados pelos militares franceses são expostos com destaques e procurados com afinco pelos consumidores. Nas sapatarias, foi retirada a poeira das botas pesadas, do estilo coturno, e agora elas brilham reluzentes para os transeuntes.
Quem preferir algo mais leve, mais adequado para primavera que começa, pode optar por blusinha de malha cor-de-rosa, azul celeste ou mesmo verde piscina. Todas estampadas em brilhantes lantejoulas ou com adereços fluorescentes das conhecidas marcas US Army, Marines etc. As três listras paralelas que aparecem nos ombros de algumas jaquetinhas não são mais as da famosa marca esportiva européia, ma a patente de sargento estilizada.
Armas de brinquedo
Paris não está só nesta triste exploração da miséria alheia. Em Barcelona, famosa por suas livrarias, obras sobre a Segunda Guerra Mundial, Churchill, Kissinger e Vietnam foram ressuscitadas e disputam o espaço com os personagens atuais, Sadam e Bush filho. Os livros são bonitos, capa dura, coloridos, grandes fotos. E aqui, como no Brasil, as maquininhas de remarcação de preço atuam incansavelmente. Nestas livrarias catalãs, o que até outro dia estava na prateleira dos encalhes, agora está estrategicamente posicionado na vitrine de entrada.
Nos boulevares franceses, lojas de réplicas oferecem aeromodelos, navios, soldados, campos de batalha, maquetes, tudo que o amante da guerra precisa para montar dentro de casa o seu teatro de operações. Para a geração ciberespaço, os mesmos produtos são apresentados na versão cd-rom, o que permite maior interatividade. Os meninos ficam maravilhados com os pequenos aviões de montar ? mas este, certamente, não será o olhar das milhões de crianças expostas às bombas enriquecidas de urânio que os jatos americanos deverão jogar sobre as cidades iraquianas.
A denúncia do uso de rejeitos radiativos das usinas atômicas americanas na produção de munição veio a público por meio de documentário recentemente veiculado pela ARTE, um canal franco-alemão de TV dedicado a arte e cultura. A guerra é tema nos cinco canais abertos da França, seja nos telejornais ou nos programas de entretenimento. Tudo para manter o nível de audiência elevado.
Deontologia possível
Esta é a tão propalada indústria cultural, alvos de diversos estudos científicos. Uma indústria sem critérios e que busca no mundo do consumo a potencialização do lucro a qualquer custo. O uso de métodos de indução é o mais inocente deles. As condenações dos especialistas, contudo, não alteraram em nada o quadro dessa sociedade de consumo. É triste presenciar tal técnica de marketing, que de forma inescrupulosa e às custas de milhares de vida busca esvaziar os estoques antigos, aumentar o faturamento, e mesmo influir no poder discricionário de cada um de nós.
Não há sequer um "desconfiômetro", tendo em vista que este comércio, de forma alienadora, se confronta com a uma das raras posturas autônomas dos povos contra os líderes das potências que defendem a guerra. Uma guerra que deverá se inserir na literatura sobre os grandes massacres do planeta.
Será mesmo de todo impossível existir uma deontologia para o comércio e para a indústria? Como conciliar a estratégia de publicitários e marqueteiros com a dignidade humana? Teremos chegado a tal ponto de insensibilidade?
São dúvidas que deveriam preocupar também
os sindicatos, os conselhos profissionais, as faculdades formadoras
das futuras gerações de especialistas em formar corações
e mentes. A sociedade tem a missão de deixar amarelando nas
vitrines os modelitos do massacre.
(*) Jornalista, mestre em Comunicação Social pela UnB, doutorando em Ciências da Informação e Comunicação no Centre de Recherches sur l?Action Politique en Europe (Crape), Université de Rennes 1, França; e-mail <chicosantanna@hotmail.com>