Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A guerra dos informes

GREVE NAS UNIVERSIDADES

Deonísio da Silva (*)

Algumas universidades têm mais de mil anos. No Brasil nenhuma é centenária. E as universidades públicas, sobretudo as federais, estão num círculo vicioso de saída difícil deste que um dos ministros do primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso baixou, não um "claro raio ordenador", como nos versos de Carlos Drummond de Andrade, mas uma reforma sem pé nem cabeça e, pior de tudo, cheia de ameaças que levaram qualificados docentes e funcionários a procurarem aposentadoria antes que seus direitos virassem pó.

Refiro-me à figura, algo esquecida pela mídia, de um ministro cujas ações resultaram nefastas para o ensino e a pesquisa nas universidades públicas, principalmente nas federais. Poupemos seu nome e digamos apenas as iniciais: Luís Carlos Bresser Pereira. Já tinha sido ministro de José Sarney em outra pasta.

O que a mídia não mostrou na cobertura rarefeita que fez da greve iniciada em 22 de agosto e sem solução até o fechamento desta edição (escrevo na segunda-feira, 1? de outubro) é o tamanho do estrago nos campi. O trabalho intelectual, não apenas o de pesquisa e ensino, vive de transformar o impossível em realizável. A mão-de-obra qualificada é o segredo dos centros de excelência. As universidades privadas ou comunitárias não deixaram de aproveitar a chance que lhes deu Bresser Pereira e contrataram docentes aposentados, aproveitando mestres e doutores no esplendor de sua produção. A alta qualificação desses docentes não lhes custou nada. Foi um presente de uma das mais sérias trapalhadas da Reforma. E mais uma vez os recursos públicos financiaram de graça o setor privado.

Já o ministro Paulo Renato Souza, que ainda está no governo, vem sendo poupado pela mídia em toda a greve de outro modo. Habilidoso, ele marca presença na mídia, apregoando as conquistas do Ministério da Educação sob sua gestão, algumas delas inegáveis, como a redução da taxa do analfabetismo em todo o país. É candidato a presidente da República e tem o direito de assim proceder. Mas certamente não pode seguir impunemente a lei Ricúpero, segundo a qual o governo deve ignorar o que está mal e divulgar o que vai bem.

Ainda que ele tente dissimular os problemas das universidades federais, manipulando os dados, a sociedade dos leitores vivos e dos eleitores atentos, porque cidadãos, merece outro tratamento dos jornalistas, facilmente enredados pelo ministro nas entrevistas e informes enviados às redações.

Faltaram e continuam faltando editores que pautem repórteres para visitar os campi, constatar o estado em que estão, entrevistar outros docentes, informar direito, em resumo, e não entrar na armadilha perigosa de ouvir lados em guerra da forma canhestra como vem acontecendo: as associações de docentes e funcionários dizem que as universidades estão sendo sucateadas. O MEC diz que isso não é verdade. A imprensa não pode se limitar a dar os dois lados apenas baseada em informes, sem uma pesquisa in loco.

Coronéis e generais

Vou ilustrar este artigo com um sinal que não é absolutamente exceção nos campi, antes é a norma. A Universidade Federal de São Carlos não tinha cursos noturnos até há alguns anos. Hoje tem vários. Trabalhadores que não podiam estudar porque trabalhavam de dia, agora podem. Um ponto altamente positivo na ainda elitista universidade brasileira. Poder estudar, podem, mas foram-lhes surrupiados, entre outras coisas, a biblioteca, o restaurante e muitos professores qualificados, substituídos por auxiliares de ensino, docentes em formação, denominados "professores substitutos", que já são maioria em vários departamentos. É preciso dizer mais?

O Departamento de Letras fundou um curso noturno em 1995. Formou sua primeira turma ano passado. A área de Literaturas de Língua Portuguesa contava com um professor no primeiro ano. A muito custo conseguiu outros dois. Três para todas as turmas e todas as disciplinas. Nenhum deles pode afastar-se por motivo nenhum. Aliás, nem morrer. O MEC autoriza contratação de substitutos. Salário mensal de um doutor por 20 horas semanais: cerca de 700 reais.

Um professor estrangeiro que já traduziu célebres autores latino-americanos para o inglês visitou a universidade há algumas semanas. Entusiasmado com as nossas letras, manifestou interesse em trabalhar no Brasil. Calculou em libras o salário de um professor doutor e achou que seu interlocutor, acostumado a ironias na ficção, estava brincando com ele.

Não. Quem está brincando com as universidades federais é o governo. A ironia maior é que não houve em governo algum tantos ministros professores universitários. Já foram titulares do MEC coronéis e generais. Um professor que é ministro do professor Fernando Henrique Cardoso e colega de outros professores universitários em outros ministérios e diversas instâncias decisivas da República não pode tratar a universidade assim. As comunidades fizeram mais uma greve: 50 das 52 universidades federais estão em greve.

Que a imprensa dê o devido desconto aos informes oficiais, deixe de poupar o ministro e vá mais aos campi. A sociedade espera isso dela.

(*) Escritor e professor da Universidade Federal de São Carlos, doutor em Letras pela USP; escreve regularmente nas revistas Época e Caras, e em <www.eptv.com.br>. Seus livros mais recentes são o romance Os Guerreiros do Campo e De Onde Vêm as Palavras


    
                  

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