"Imprensa brasileira educou elite do país", copyright Folha de S. Paulo, 15/7/00
"Ao nascer , a imprensa brasileira não se caracterizava pela publicação de notícias, pela objetividade no trato dos acontecimentos, pela publicação de comentários judiciosos ou pelo debate profundo de idéias. Longe disso. Em 1821, ao gozar pela primeira vez de liberdade, os jornalistas brasileiros se esmeraram nos xingamentos pessoais, na invenção de fatos, nos golpes baixos e no manejo de uma eloquência incandescente, que mascarava sua ignorância.
Em ‘Insultos Impressos’, a historiadora Isabel Lustosa, pesquisadora da Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, capta o nascimento tumultuado da imprensa nacional: os dois anos, de 1821 a 1823, nos quais d. João abandona o Rio para voltar a empunhar o cetro em Lisboa e nomeia d. Pedro príncipe regente, que proclama a independência nacional.
Em 1821, os ecos da eclosão da revolução liberal no Porto chegaram ao Rio e fizeram com que, na prática, a censura fosse abolida. Pela primeira vez na história da América portuguesa, houve liberdade de expressão e de opinião. Pela primeira vez, houve publicações que não emanaram da imprensa régia, inaugurada em 1808, quando a família real lusitana fugiu dos exércitos napoleônicos para os trópicos.
A imprensa surgida em 1821 consistia em publicações de periodicidade indefinida, tiragem diminuta (em poucos casos tiveram mais de 200 assinantes) e duração efêmera. Os jornalistas eram políticos que viviam à sombra do trono, clérigos recém-saídos do púlpito, militares de patente e comerciantes maçons de pouca intimidade com o idioma escrito. O público de jornais era formado, em primeiro lugar, pelos seus próprios autores, engalfinhados numa luta sem quartel pela defesa de seus interesses políticos. O lema deles poderia ser a frase que frequentemente repetiam: ‘Quem seus inimigos poupa nas mãos lhes morre’.
Isabel Lustosa trata o jornalista daquela época com simpatia, procurando entendê-lo. Ao descrevê-lo, parece estar falando de muito jornalista de hoje: ‘Quase sempre autodidata, é obrigado a se informar e a falar sobre tudo. Superestima, então, a própria capacidade e, como tem poucos a criticá-lo e a superá-lo, perde a autocrítica: sua ciência lhe parece realmente infinita, abrangendo todas as coisas sabíveis’.
Nesse meio, havia quem sobressaísse. É o caso de Hipólito da Costa, que, segundo o crítico Antonio Candido, ‘foi o primeiro brasileiro a usar uma prosa moderna, clara, vibrante e concisa, cheia de pensamento, tão despojada de elementos acessórios que veio até nós intacta, fresca e bela, mais atual que a maioria da que nos legou o século 19 e o primeiro quarto deste’.
Considerado o primeiro jornalista brasileiro, o fundador do ‘Correio Braziliense’, contudo, escrevia de Londres, onde estava exilado.
Num segundo plano, o alvo dos jornalistas improvisados eram pequenos proprietários, donos de escravos fugidos, funcionários públicos e uns poucos professores primários. Nenhum dos órgãos surgidos na época tinha a mínima viabilidade comercial. Tanto que todos morreram ao cabo de alguns meses.
Como produto da proibição da metrópole de que houvesse cursos universitários na colônia tropical, autores e público da imprensa eram, em geral, pouco letrados. Eles formavam uma elite xucra, cujo maior expoente era d. Pedro, um rapazola de 22 anos sem nenhum interesse em política e curiosidade cultural, que vivia a frequentar tabernas.
A maioria das publicações tinha como objetivo influenciar o pensamento de d. Pedro, que, com a volta de seu pai a Portugal, virou da noite para o dia a maior autoridade da nação que se formava, senão a única. D. Pedro, por sua vez, era autor que usava pseudônimos ou penas de aluguel para atacar pela imprensa os seus adversários. No mais das vezes, os ataques principescos eram sórdidos e resvalavam para a pornografia.
De certa forma, d. Pedro é um dos heróis de ‘Insultos Impressos’. Ziguezagueando e dando cabeçadas, mais atacando a liberdade do que a preservando, ele aprende com a crise política que, cada vez mais acesa, passa pelo Dia do Fico e desemboca na proclamação da independência. Se não a domina, e muito menos a lidera, d. Pedro se adapta a ela e a faz avançar.
No Dia do Fico, 9 de janeiro de 1822, por exemplo, de fato se recusa a cumprir a ordem das Cortes Constituintes de Portugal de que retornasse de imediato a Lisboa. Seus termos, porém, são protelatórios: ‘Convencido de que a presença da minha pessoa no Brasil interessa ao bem de toda a Nação Portuguesa e conhecendo que a vontade de algumas províncias assim o requer, demorarei a minha saída, até que as Cortes e Meu Augusto Pai e senhor deliberem a este respeito com perfeito conhecimento das circunstâncias que têm ocorrido’. O texto terminava com uma exortação da Câmara de Vereadores do Rio no sentido de que a plebe mantivesse a calma.
No dia seguinte, no entanto, o texto do regente, modificado pelo Senado, é republicado. Dessa vez, com as palavras que entraram para os livros escolares: ‘Como é para o bem de todos e felicidade geral da Nação, estou pronto: diga ao povo que fico’.
No 7 de setembro, d. Pedro disse, com os pés nos estribos e com a espada desembainhada: ‘Brasileiros, a nossa divisa de hoje em diante será ‘independência ou morte’!’. Os fatos no Ipiranga foram menos dramáticos do que reza a crônica ufanista, segundo o relato de uma testemunha, o padre Belchior Pinheiro de Oliveira.
Foi o padre quem leu para o regente as cartas de sua mulher, d. Leopoldina, e de José Bonifácio, instando-o a romper os laços com Portugal. Depois da leitura, conta ele, d. Pedro, ‘tremendo de raiva, arrancou de minhas mãos os papéis e, amarrotando-os, pisou-os, deixou-os na relva. Eu os apanhei e guardei. Depois, abotoando-se e compondo a fardeta, pois vinha de quebrar o corpo à margem do riacho do Ipiranga, agoniado por uma disenteria, com dores, que apanhara em Santos, virou-se para mim e disse: ‘E agora, padre Belchior?’’. O reverendo também recomendou a separação de Portugal. Só então, na presença de menos de 40 pessoas, d. Pedro deu o grito do Ipiranga.
Ainda que não tenha cabimento julgar a imprensa de então pelos critérios de hoje, Isabel Lustosa demonstra que, com poucos meios, servindo-se dos instrumentos que a sua formação e a conjuntura lhes colocara ao alcance, os jornalistas contribuíram para situar e esclarecer o debate político. Um debate que se deu num quadro revolucionário: em apenas dois anos, tanto a casa de Bragança como a Constituinte de Lisboa foram levados a aceitar a independência nacional.
‘Esse jornalismo furioso, usando ora uma batida retórica revolucionária francesa, ora os bons e velhos aforismos portugueses, realizou de forma programática a missão educativa a que se propusera a imprensa brasileira no seu nascedouro’, escreve a historiadora. ‘Educou, talvez, nem tanto ao povo, mas à sua elite. Elite que, quase toda, frequentou as páginas dessa imprensa de insultos, onde se formou e aprendeu as manhas da política às custas da nação, como aprende o barbeiro novo na barba do tolo’. [Livro: Insultos Impressos. Autor: Isabel Lustosa. Editora: Companhia das Letras. Quanto: R$ 28,40 (512 págs.)]"