CAPITAL ESTRANGEIRO
Nelson Hoineff (*)
O debate em torno da reforma do artigo 222 ganhou transversalmente, na defesa que a Globo faz de sua posição, a mais importante contribuição até agora para a discussão da matéria. Para travar seus opositores, a Globo sustenta a "emenda aglutinativa" que condiciona a aprovação de 30% do controle acionário das redes de televisão por empresas estrangeiras à obrigatoriedade de veiculação de 70% de conteúdo nacional.
É uma proposta tímida e incompleta ? mas inaugura a primeira discussão autenticamente relevante de que se tem notícia envolvendo conteúdo, mecanismos de produção em TV e soberania nacional.
Só a tramitação dessa emenda já eleva para uma dimensão bem mais nobre ? e de legítima importância para a sociedade brasileira ? um debate que até então se resumia em equacionar de que maneira o fermento estrangeiro pode aumentar o bolo contábil da televisão no país e fazer com que mais empresários tenham fatias suficientemente suculentas para dividir.
Mais de uma vez tem sido lembrado que a história da televisão brasileira não se escreve através de seus sucessos, que são poucos, mas de seus fracassos, que são muitos. Pois o maior fracasso dessa televisão hoje não se resume à inviabilização financeira da maior parte das redes e emissoras que estão estruturadas no país. Ele consiste principalmente na incapacidade da televisão de gerar para seu público uma programação de qualidade e sobretudo na sua falha em produzir e veicular uma programação brasileira, que sirva minimamente ao compromisso social que ela assumiu junto à população que a abriga e que paga as suas contas.
Essa última é bem mais complexa que uma simples artimanha comercial. Trata-se verdadeiramente de uma questão que envolve a segurança nacional. Já o seria em qualquer parte do mundo ? e o é por muito mais razões no Brasil, onde a televisão goza de uma penetração e de um poder de formação de seus consumidores incomparavelmente maior que a de qualquer outra mídia, sobretudo a impressa.
A nacionalização da programação é premissa básica para a sedimentação de uma identidade nacional mínima neste país. Ao mesmo tempo, a diversificação das fontes emissoras é pré-requisito para que a televisão possa cumprir um papel não apenas de entreter, mas de vigiar as instituições e manter a sociedade brasileira informada sobre o que acontece à sua volta.
Se essas duas propriedades não são em si mais importantes do que a necessidade de fazer com que quatro ou cinco empresários possam pagar as suas contas, então estamos definitivamente mergulhados no obscurantismo e dele não vamos jamais emergir.
Mas se não é isso que acontece, então a discussão sobre a abertura das empresas de comunicação ao capital estrangeiro tornou-se na verdade o debate sobre a construção da identidade da sociedade brasileira.
As peças do jogo são, portanto, a nacionalização da produção televisiva e sua diversificação. Esta última pode ser entendida pela vida financeira saudável de várias emissoras mas não pode ficar apenas nisso. Ela subentende também, e principalmente, a pluralização da produção ? o que só pode acontecer com uma presença forte e contínua da produção independente.
As emissoras que se esmeraram em importar novelas mexicanas e enlatados hollywoodianos de última qualidade costumam associar a idéia de "produção independente" a de produtos não-competitivos, elaborados para satisfazer o ego do autor. Ironicamente, nas fontes em que a televisão brasileira vai buscar a sua programação, é justamente o oposto que acontece. Nos EUA, mais de 60% da programação veiculada pelas grandes redes, inclusive os programas jornalísticos, não são produzidos nas emissoras mas fora delas; e a maioria esmagadora da dramaturgia tatibitati que os brasileiros vão comprar no México e na Venezuela não é vendida no balcão da Televisa ou da Venevision, mas das produtoras independentes onde as redes mexicanas e venezuelanas também vão bater.
Preservação da cidadania
É deliciosamente divertido, sem dúvida, que a Rede Globo e o PT tenham historicamente ficado pela primeira vez do mesmo lado justamente nessa questão. O que isso revela, no entanto, não são identidades de pontos de vista, mas a convergência dos múltiplos fatores envolvidos na matéria. Exigir que a programação de TV vista por brasileiros contenha elementos brasileiros e seja feita por brasileiros, por exemplo, é bem menos que pedir que os jornais brasileiros não sejam apenas traduções do El Mundo ou do Washington Post. Este é um consenso suprapartidário, para dizer o mínimo.
Ocorre que, ao longo dos últimos 30 anos, a Globo montou uma linha de produção dramatúrgica que se impôs ao público brasileiro, com todos os benefícios e os riscos que isso possa acarretar. Riscos de uniformização cultural, que são bem conhecidos de todos. Benefícios de cristalização de um índice inédito de mais de 65% de nacionalização da produção.
Quem tem isso ? e quase 70% do bolo publicitário ? não quer dividir com ninguém, muito menos com a Disney. Só que do outro lado do balcão estão empresas que clamam falta de condições de competitividade se não chegar o reforço de caixa do Tio Patinhas.
É o custo cultural ? e não apenas social ? desta visita à caixa-forte que acaba de entrar em discussão. Pelo mais improvável dos caminhos, acorda-se agora para o fato de que a televisão brasileira não poderia ter chegado aonde chegou ? e que, de qualquer maneira, não pode continuar onde está.
Uma indústria com o peso da televisão no Brasil não tem condições de suportar o monopólio de uma rede aberta ? para não entrarmos na questão mais delicada ainda do monopólio da programação de TV por assinatura, de sua operação e do provimento de novas tecnologias, das quais a internet é só a ponta do iceberg. Mas näo pode também assistir de braços cruzados o triste espetáculo de concessões públicas definhando economicamente e induzindo a sociedade brasileira à extenuação cultural mais perversa ainda. E pior: tudo isso é pouco se comparado à mera possibilidade de uma grotesca forma de colonização, onde 78% dos brasileiros que têm na televisão seu principal ou único mecanismo de informação não reconheçam nele a sua sociedade e muito menos a si mesmos.
Uma programação altamente nacionalizada e necessariamente pluralizada é condição essencial para se evitar o agravamento de uma crise de identidade sem volta. Os problemas financeiros de empresários que nunca se esmeraram muito na preservação da cidadania e da construção de uma televisão brasileira passaram a ser, por mero acaso, o pretexto ideal para isso.
O que importa, porém, é que os deputados e senadores da República entendam que já não é mais sobre meia dúzia de donos de emissoras, mas sobre o país de 170 milhões de brasileiros que a reforma do Artigo 222 da Constituição está falando.
(*) Jornalista, escritor e diretor de TV
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