Tuesday, 19 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A imagem sem informação

COBERTURA AO VIVO

Antônio Brasil (*)

"Se algum dia o telejornalismo fosse reinventado, poderíamos muito bem, descartar as transmissões de grandes eventos "ao vivo" e considerá-las como um dos maiores fracassos dos anos 90, uma época em que o sensacionalismo se sobrepôs ao conteúdo".

A epígrafe acima é uma das constatações mais pessimistas e ao mesmo tempo mais pertinentes contidas no livro de memórias do premiado correspondente de guerra da BBC e atual membro do parlamento inglês Martin Bell, In Harm?s Way ? reflections of a war zone thug. Com a experiência de quem cobriu da guerra do Vietnã aos conflitos na Bósnia e dessa forma tendo testemunhado a própria história do meio televisivo, Bell reflete sobre os descaminhos recentes do telejornalismo em todo o mundo.

Aqui no Brasil, na semana passada, tivemos a oportunidade de assistir a um dos maiores exemplos desses descaminhos, durante a cobertura "ao vivo" do jornalismo-show em mais um capítulo da novela da vida real, em "A volta do seqüestrador". A constatação sobre as verdadeiras implicações desse tipo de transmissões telejornalísticas pelo experiente jornalista inglês, torna-se, hoje, ainda mais evidente. Afinal, se ainda estamos fazendo a própria história do meio televisivo e principalmente do segmento telejornalístico todos os dias, talvez devêssemos parar para avaliar o nosso percurso até aqui e as nossas opções para o futuro. Somos co-autores do roteiro dessa história e responsáveis pelas novas encruzilhadas oferecidas pelas estratégias de cobertura dos fatos considerados jornalísticos e pela utilização apropriada das novas tecnologias. Mas também somos responsáveis pelas conseqüências do resultado dessas estratégias e da utilização desses meios, principalmente quando eles nos fascinam de tal modo, a subverterem os valores maiores da prática jornalística.

Produzir bom jornalismo demanda tempo e dá trabalho! Independente do meio, impresso ou eletrônico, não podemos ser simplesmente reféns de uma técnica e de uma única estratégia de cobertura, evitando, de uma forma arriscada, o objetivo maior da apuração jornalística da notícia. Presenciar, ver, assistir, testemunhar, transmitir não são garantias de conteúdo e informação. Há muitos anos, ao deixar o conforto das redações e se deslocar "perigosamente" para as frentes de notícia, o jornalista, numa dessas encruzilhadas da nossa história, decidiu ver com os próprios olhos e testemunhar "in loco" os grandes eventos jornalísticos.

Ao invés de entrevistarmos os refugiados das guerras nos portos de chegada, resolvemos lutar pelas notícias, e embarcarmos para todos os cantos, atrás dos fatos onde eles estiverem. Esta foi uma decisão estratégica importante. O jornalista agora vai onde a notícia está. Mas com o aperfeiçoamento das tecnologias comunicacionais, nossas câmeras, por exemplo, passaram a ser nossos olhos, próteses avançadas de uma curiosidade primitiva mas essencial na busca de notícia. Agora vamos mais longe, vemos mais e, teoricamente, com mais segurança. Aguçamos ainda mais a nossa curiosidade, revelamos algo que não vemos e fazemos um zoom in que nos aproxima dos fatos. Ponto para o jornalismo!

Contudo, quando as câmeras passam a controlar e ditar a reportagem, o problema, talvez, não seja tanto do conteúdo das imagens, mas do acomodamento do jornalista. Uma prótese pode recuperar a visão, por exemplo. Pode até mesmo aumentar a capacidade natural do olhar e conceder super poderes ao jornalista, ver o que ninguém mais vê. Mas também pode incentivar e justificar o descaso e a acomodação. O que era para ser uma extensão do corpo, do olhar, passa a ser um substituto da curiosidade e da investigação. Culpa-se a imagem quando, na verdade, o problema é um quase "seqüestro" do jornalismo que torna-se refém da representação. "Tenho que continuar transmitindo a mesma imagem que todas as outras emissoras porque não posso arriscar a perder "aquela" imagem, o momento máximo de qualquer cobertura ao vivo, ou seja, quando alguma coisa acontece", declarações como esta são comuns entre os editores responsáveis pela orgia de transmissões "ao vivo" em nossa televisão. Existem muitos argumentos para essa verdadeira profusão de notícias vinte e quatro horas na televisão mas qualidade jornalística, certamente, não é uma delas. Assim, continuamos a ser submetidos e hipnotizados pelas mesmas imagens que nada dizem durante horas a fio.

A estratégia de confiar à imagem a responsabilidade da informação costuma desfazer os critérios básicos de apuração da notícia e criatividade informacional. O repórter fica restrito à uma situação de relator do óbvio, descrevendo as mesmas imagens que o telespectador assiste em casa num verdadeiro show de redundâncias e especulações. Culpa-se a imagem quando na verdade ela substitui, por acomodação, o bom e velho jornalismo. Ver é sempre mais fácil, mais sensacional e também rende muito mais audiência do que ir até lá e apurar. Graças a esse novo telejornalismo, hoje, temos a oportunidade de assistir "ao vivo" aquilo que pagamos tão caro para vermos no cinema. Queremos ver cada vez mais e melhor! Mas nada supera o show extra proporcionado pela realidade. Cria-se um espetáculo hipnótico de voyeurismo onde não se confessa nunca, um certo desejo mórbido de superação da ficção e um estímulo irresistível pelas nossas pulsões mais primárias. Assiste-se a uma espécie de "Máquina mortífera 3" só que "ao vivo e a cores". Exatamente como se você estivesse lá, mas sem os riscos e as conseqüências inerentes do imprevisível, do chocante. Um show de notícias mórbido mas totalmente virtual, semelhante às corridas da fórmula um, onde muitos telespectadores aguardam silenciosamente os "acidentes trágicos" que rendem "shows fantásticos" aos jornalistas. Mas afinal, por que assistimos?

Última gota

É evidente que diante da perspectiva de um certo jornalismo pós-moderno, a transmissão "ao vivo" encerra a possibilidade da realização dos desejos mais ocultos, tanto do público como do profissional de TV. Afinal, uma cobertura "ao vivo" inclui sempre a possibilidade ou a expectativa de um desfecho trágico como a do ônibus 174, no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro. Naquela ocasião, as câmeras e as imagens passaram a serem culpadas pela falta de treinamento, incompetência e desmandos de policiais e, principalmente, pela vaidade do homem. A imagem aparece e faz aparecer. Faz o anônimo se tornar famoso e o criminoso ou a vítima, herói. É só mostrar, seja numa grande operação de tv ao vivo ou resguardada numa pequena maleta "oculta", cabe sempre à imagem, fazer o que o jornalista não quer, não pode ou não tem tempo de fazer, jornalismo. Ser sensacional substitui ser bom profissional. As imagens ajudam e podemos sempre culpá-las pelos possíveis e indesejados excessos.

Aos jornalistas deveriam ser preservados os espaços para a reflexão, apuração e principalmente para o "silêncio" durante qualquer tipo de transmissão televisiva, "ao vivo" ou não. Um dos maiores talentos de um jornalista de tv é saber valorizar as características da boa imagem e transformar suas palavras em reverência, em "silêncio" ou simples exercício de humildade. Eles deveriam ter o direito de pensar e não falar sobre aquilo que, simplesmente, não sabem. Mas ao contrário, exige-se deles sempre aquele previsível festival de besteiras, informações desencontradas, desmentidos recorrentes, correções apressadas ditadas sempre pela urgência em relatar primeiro. E isso se justifica: televisão é o tipo de negócio em que o sucesso desaparece rapidamente mas o fracasso persegue qualquer profissional do meio, por muitos anos, gerando uma tremenda insegurança. A idéia é pois, "bater" a concorrência com a última notícia a qualquer custo, mesmo que seja com uma notícia errada ou mera especulação. E, novamente, cabe à imagem segurar todo esse show de desinformação e em última instância, ser culpada de quaisquer exageros de uma realidade que insiste em nos surpreender sempre. Ela pode nos chocar tanto pelo sangue, pela miséria mas principalmente pela sua sedução que nos provoca. Assistimos como avidez até a última gota.

Próximo capítulo

Quando as câmeras interferem no mundo real deveríamos também pensar que talvez o erro não esteja somente na imagem que elas produzem ou nas distorções que elas induzem, mas, talvez, na própria… realidade. Se o público telespectador americano não tivesse tido acesso, pela primeira vez em sua história, aos verdadeiros horrores das imagens de jovens morrendo num país distante por nada, talvez ainda estivessem morrendo e, pior ainda, matando. Aqui no Brasil, nossa realidade mata e explode gente o tempo todo em todos os lugares e fazemos muito pouco para evitar essa trágica realidade. Assim como os espelhos, as imagens simplesmente refletem a realidade que construímos e presenciamos todos os dias. Elas possuem distorções e exageros, típicos de qualquer meio de representação ? afinal palavras também causam mortes e guerras ? mas em verdade: assiste quem gosta, pensa quem pode mas age… quem quer.

Culpar as imagens pela retratação da realidade também pode ser uma boa maneira de ocultar e suavizar o mundo que estamos criando com um jornalismo comprometido com o capital e o poder. Estamos vivendo mais uma encruzilhada do jornalismo, principalmente, na televisão. Os caminhos que tomamos não são únicos e irreversíveis. Escrevemos nossa história todos os dias mas decidimos em momentos liminares como os que estamos vivendo agora. Existem ocasiões quando o jornalismo parece quase privilegiado, como se tivesse uma cadeira na primeira fila no desenrolar da história. Mas isso tende a ser cada vez menos um privilégio e cada vez mais, um verdadeiro e enorme peso ou sentimento de impotência diante dos fatos. Nos é permitido presenciar regularmente uma dura realidade mas, mesmo assim, não temos condições de evitarmos que ela se repita. Assistimos cada vez mais e fazemos cada vez menos.

Por outro lado, podemos continuar insistindo numa "iconoclastia moderna", como descreve o pensador francês, Paul Virilio, em sua obra A Máquina de Visão. Continuamos culpando as imagens por tudo de ruim em nossa sociedade. Tanto aqui como no distante mundo talibã, no Afeganistão, as imagens ou os ícones religiosos são tão perigosos que devem ser sempre destruídos em grandes e raivosas explosões. Eliminar ou suavizar imagens não elimina nem suaviza a realidade. Muito pelo contrário! Esse pavor do poder das imagens é bem conhecido através da história. Pessoas e religiões insistem e persistem em sua eliminação e controle. Mas muito pior do que as imagens, podem ser as palavras ou inverdades que se falam sobre elas e com elas. Os comentários ou as legendas sobrepostas às imagens se constituem num instrumento ainda mais poderoso de distorção e desinformação. As imagens podem ser uma terapia de choque ? foi para os americanos na cobertura da guerra do Vietnã ? mas, para nós brasileiros, elas fascinam, hipnotizam, assustam e, infelizmente, imobilizam. Um país inteiro assiste pela televisão ao vivo à novela da vida real e espera ansiosamente, no dia seguinte, pelo próximo capítulo. Só que nesta novela, no jornalismo-show, assim como bem sabe hoje, o Silvio Santos, qualquer um de nós pode ser a próxima estrela principal.

(*) Jornalista, coordenador do laboratório de televisão e vídeo e professor de telejornalismo da Faculdade de Comunicação Social da UERJ

    
                  

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