DOMINGO ILEGAL
Leandro Marshall (*)
Voltamos à pergunta que não quer calar. Afinal de contas, o que está acontecendo com o jornalismo? Na esteira do pensamento do crítico norte-americano Howard Kurtz, venho sustentando a tese de que o jornalismo entrou, na verdade, em sua era cor-de-rosa. Além das fases da imprensa amarela e marrom, mas sem abandoná-las, o ofício jornalístico passou a abraçar as lógicas e as ordens do mercado e se rendeu, de corpo e alma, ao business empresarial neoliberal.
É só dar uma olhada no cenário pós-moderno do capitalismo tardio para verificarmos que a mídia em geral se tornou, a partir dos anos 1980, mais um dos sustentáculos do modelo econômico tatcherista-reaganista da liberalização, privatização, desregulamentação e flexibilização. Hoje a imprensa cor-de-rosa está prostrada diante do paradigma que economicizou a cultura e culturalizou a economia.
Os jornais cor-de-rosa, o jornalismo cor-de-rosa, a notícia cor-de-rosa, os jornalistas cor-de-rosa são aqueles que trabalham para favorecer os interesses e as necessidades do mercado. A ordem é agradar a todos ou, de preferência, não desagradar a ninguém, sobretudo eles.
O máximo de sensacionalismo
O jornalismo cor-de-rosa é aquele que hoje vende o espaço editorial para anunciantes divulgarem sua publicidade. É aquele em que se forjam pegadinhas na mídia eletrônica em busca da audiência. É aquele em que apresentadores de televisão vendem suas opiniões a empresas comerciais, com contrato assinado e tudo. É aquele em que repórteres e redatores produzem leads e pirâmides invertidas nas linhas de montagem fordistas das redações. É aquele em que escolas de jornalismo de fundo-de-quintal expedem diplomas industrialmente. É aquele em que o jornalista repete como papagaio a grita contra a censura quando o perigo maior está na autocensura. É aquele, por fim, em que iluminados defendem o tecnicismo e o modelo do jornalismo USA Today para os jornais e para o ensino acadêmico no Brasil.
Na verdade, o jornalismo cor-de-rosa não chega a ser o fim da imprensa amarela e da imprensa marrom. O jornalismo cor-de-rosa é uma nova etapa histórica onde convivem lado-a-lado o sensacionalismo da imprensa amarela, a manipulação da verdade da imprensa marrom e a notícia light, plastificada e marketizada da imprensa cor-de-rosa.
Só para lembrar, a imprensa amarela nasceu nos Estados Unidos como uma conotação das histórias em quadrinhos divulgadas em páginas amarelas, e está associada à época do nascimento do sensacionalismo, com a superlativação das notícias pelos jornais para se angariar leitores. Os fatos eram superdimensionados para que garantissem uma atmosfera de espanto e alarde.
A imprensa marrom inaugurou a era dos escândalos, do denuncismo gratuito, do jornalismo mexeriqueiro, das sessões de fofocas, das notícias dos bastidores da sociedade, para artificialmente produzir-se um ambiente de espetacularização. Estão associadas a esta etapa as reportagens de caráter especulativo e espetacular sobre o mundo da política, dos artistas, das personalidades públicas. Este tipo de imprensa é, sobretudo, aquele que manipula arbitrariamente os fatos, imaginando, inferindo, especulando, inventando, elucubrando, para deles extrair e artificializar o máximo de sensacionalismo.
Personagens de fantasia
A imprensa cor-de-rosa nasceu na segunda metade do século 20 e soma as características das eras amarela e marrom ao fato de render-se ao mundo da publicidade e do mercado, cruzando notícia e anúncio no mesmo corpo de texto. Ela inaugura assim a queda do muro entre o espaço jornalístico e o espaço publicitário, permitindo que a lógica do mercado transite com naturalidade entre as notícias, os jornais e o jornalismo.
Hoje, a necessidade primeira da imprensa cor-de-rosa é auferir lucros, audiências e publicidades, o que faz com que o jornalismo tenha se condicionado a tratar tudo de maneira a atrair o capital e a ser um produto aceito universalmente. O espetáculo e o sensacionalismo, naturais ou fabricados, fazem com que o jornal cor-de-rosa seja uma coisa onde se reúnem consumo, entretenimento, publicidade, marketing, serviço, espetáculo, jornalismo etc.
A lógica é perversa, mas está aí para todos verem. Casos como o do jornalista Jayson Blair, do New York Times, que impressionaram muita gente, estão se tornando, na verdade, corriqueiros na imprensa mundial. Já nos anos 1990 assistimos a casos de fraude jornalísticas em vários países do mundo. Em 1998, só os Estados Unidos foram palco de três casos graves de desobediência ao princípio da verdade no jornalismo. O primeiro deles aconteceu quando jornalistas da Time revelaram que o exército dos EUA teria usado gás Sarin, uma arma química, contra desertores americanos na guerra do Vietnã. Dias depois da denúncia verificou-se que a história era mentirosa. Os jornalistas haviam simplesmente inventado os fatos.
O segundo caso surgiu com a descoberta de que um jovem jornalista da revista semanal New Republic, Stephen Glass, inventara 27 das 41 reportagens de sua autoria. Nada de verdade havia nos 27 textos. O terceiro caso aconteceu em Boston, onde uma jornalista do Boston Globe, Patrícia Smith, finalista do Prêmio Pulitzer, a mais alta distinção concedida a um jornalista nos Estados Unidos, utilizou sua criativa imaginação para moldar fantasiosamente personagens e frases em seus artigos.
Direção a reencontrar
Mais recentemente, uma jornalista do Washington Post foi agraciada com o Pulitzer por reportagem sobre uma menina de apenas 8 anos que estaria viciada em heroína. Pouco tempo depois, verificou-se a história e constatou-se que o caso era inventado do começo ao fim. A jornalista teve que devolver o prêmio. Na Alemanha, em fevereiro de 2000, a TV estatal demitiu o jornalista Frank Höfling, seu correspondente na Chechênia, depois que este admitiu ter comprado imagens de um cinegrafista local sobre cenas da guerra e corpos sendo arrastados por um caminhão. Além de ter confessado a compra do material, Höfling disse não ter certeza sobre a veracidade das imagens. Em outro caso recente, novamente na Alemanha, o jornalista free-lancer Tom Kummer, 37 anos, foi descoberto inventando entrevistas com celebridades. Tom trabalhava para a revista Sueddeutsche Zeitung (SZ) e, segundo denúncia da revista concorrente Focus, confirmada pela direção da SZ, criou fantasiosamente uma série de entrevistas com Courtney Love, Ivana Trump, Bruce Willis, Robert Redford, Kim Basinger, Brad Pitt etc.
Educados ao longo de suas vidas pela mamadeira invisível do mercado, os jornalistas cor-de-rosa acabam cometendo tais infrações em nome da competição e da sobrevivência, valores erigidos pelo próprio mercado. O registro, a produção, a construção, a edição, a descrição, a narração, enfim, todos os processos naturais do jornalismo, acabam condicionados ao crivo moral, estético e comercialista do mercado.
Espero, no fundo, que o Gugugate possa servir de lição para que repensemos as práticas e os caminhos do jornalismo, e reencontremos a direção do interesse público e o compromisso com a verdade.
(*) Jornalista e professor de Teoria da Comunicação, mestre em Comunicação Umesp/SP, doutorando em Comunicação PUC/RS