GOLPE DE 1964
Fabio Leon Moreira (*)
Em meio a essa nova guerra arquitetada pelos EUA, ecoam ainda tímidos os protestos sobre o fôlego que restará para aplacar a nossa guerra, a civil, que a criminalidade decreta, que amedronta, que assassina juízes. Enfim, a rotina da impunidade. De tantos conflitos internos na história do mundo, o nosso serve e serviu para infindáveis estudos, talvez tão numerosos quanto os concebidos na época do regime militar. Guardadas as devidas proporções de hoje em dia (aí está a CNN que não me deixa mentir), as ditaduras do passado foram feitas para confundir informação.
Se hoje temos uma abertura democrática mais abrangente, isso não significa que um ACM da vida, dono de um conglomerado de meios de comunicação em sua república, não se ache no direito de grampear desafetos num modus operandi idêntico ao dos arapongas do extinto SNI. A diferença é que hoje não existem (será?) os famigerados censores, que incorporavam verdadeiros açougueiros de papel, munidos de suas indefectíveis canetas pilot vermelhas, adentrando as redações dos principais jornais do país e imprimindo a ordem de "censurado" em irritantes letras garrafais em notas, artigos, matérias, fotografias, reportagens. Era um aviso: se a empresa jornalística assumisse o risco de publicar tal "desacato" iria se ver com as autoridades militares.
Embora não seja exatamente este o filão que norteia as páginas do livro O golpe de 64 ? A imprensa disse não (Editora Civilização Brasileira, organização de Thereza Cesário Alvim, 219 páginas), que completa 24 anos em 2003, diferentemente de outras obras que tentaram esmiuçar os bastidores dos anos de chumbo, este livro reuniu o que de mais ousado a coragem permitiu produzir, frente à arbitrariedade com que os generais comandavam o país. Detalhe importantíssimo: todas as manifestações autorais foram publicadas às vésperas de se completar apenas o primeiro ano de vida daquele fatídico 1? de abril de 1964. Não é uma simples coletânea de remissões de alguns dos jornalistas mais brilhantes do século 20, mas a antevisão, em diversos graus de perspectivas sociopolíticas, da safra de conseqüências que estaria por vir nos impensáveis 25 anos de um eterno eclipse total que fez a democracia perecer na penumbra.
Não à toa, eram os profissionais da imprensa os principais alvos dos presidentes fardados. Como escreve Ênio Silveira, os primeiros a descobrir que não haveria medição de esforços para se implementar um regime político autoritário que justificaria todas as violações das garantias constitucionais mais elementares. Para os não muito escolados em história contemporânea, descobre-se, por exemplo, que o jornalista Carlos Heitor Cony (em texto comentado logo adiante) foi enquadrado na Lei de Segurança do Estado do Rio de Janeiro por artigo publicado no Correio da Manhã, cujo redator-chefe era Antônio Callado.
Aliás, o que se pode observar nos textos de Callado e de alguns outros jornalistas que serão aqui citados era a incrível (e ainda permitida) capacidade de elaborar críticas tão ácidas sobre o cenário verde-oliva da tupiniquilândia, atreladas a muito e sortido bom humor. Em "A merenda dos generais", Callado dispara já no primeiro parágrafo que a linha-dura era um dos fenômenos mais curiosos do Brasil. Que fazia lembrar outra instituição brasileira: o Clube dos Cafajestes. Só que o clube, naturalmente, era muito mais divertido.
Em seguida, vem antológico texto de Barbosa Lima Sobrinho sobre o arbítrio paranóico da prisão preventiva, recurso esse criado para se dar voz de prisão a todo e qualquer suspeito de atividades subversivas. Escreve Sobrinho que a prisão preventiva pode dar a idéia abrangente de que qualquer encarceramento, neste sentido, pressupõe a opção por livrar qualquer cidadão de males e perigos futuros. O campo da prevenção é praticamente ilimitado. A autoridade, ainda segundo o texto, poderia mandar prender o indivíduo para evitar-lhe o risco de ser atropelado por um automóvel ou de ser mordido por um cão hidrófobo. Ou, ainda, libertá-lo de uma ligação amorosa inconveniente. Era de deixar qualquer legislador da época com um carimbo de imbecil impresso na têmpora. Depois, Sobrinho retorna à seriedade, quando diz que a prisão em si necessita de requisitos que vão da gravidade do delito a provas de sua autoria, chegando a dizer que não cabe a prisão preventiva quando se começa por faltar o próprio crime.
Melhor nem pensar
Adiante vem o diálogo "reproduzido" por José Carlos Oliveira entre um delator e um delegado. A hipocrisia é tão nítida que mesmo quem não sabe seu significado terminológico compreende sua essência em instantes:
O delator:
? Senhor delegado, tenho uma denúncia. Na frente do Copacabana Palace estão alguns meninos maltrapilhos. Um estrangeiro está filmando os meninos. A cena constitui um contraste brutal: meninos miseráveis contra um fundo de luxo e ócio. Mais tarde, a película será levada aos países amigos, os quais terão uma imagem deformada sobre o Brasil. Peço providências.
? Meninos maltrapilhos em Copacabana? Isso só pode ser invenção de algum inimigo das nossas tradições ocidentais. Vou mandar prendê-lo ? diz o delegado.
Logo depois, "A Revolução dos Caranguejos", de Carlos Heitor Cony, acompanhado de quase um desabafo de ímpeto pessoal. Descreve que, com algum caráter e patriotismo, é possível que "os próprios militares compreendam o mal passo que estão dando, desmoralizando o Brasil perante o mundo e, o que é pior, destruindo o que de melhor temos como Nação: a vergonha. (…) Falam em hierarquia, disciplina e consideram a pátria salva porque os generais continuarão a receber continência e medalhas em temo de serviço, à falta de condecorações mais bravas".
Comentar os outros textos seria apenas uma extensão da brilhante redundância coletiva daquela geração de jornalistas, quando mais do que nunca se compreendeu o sentido de sobrevivência desta labuta. Noves fora a angústia (outrora) romântica de se pertencer a essa classe e tendo que lidar, além das tempestades habituais vindas da caserna, com preocupações mais prosaicas como a insônia, a tensão, o tabagismo, o cansaço, enfim.
De lá pra cá muita coisa mudou. Os interesses são outros, os inimigos mudaram de lado. O corporativismo virou o novo messias das empresas de comunicação. Fico imaginando que se houvesse uma outra "revolução", nos moldes de 64, só jornais compactuados com coronéis, usineiros ou qualquer força política reinante estariam a salvo de intervenções diretas do Estado. E os jornalistas que viessem a defender os coleguinhas "subversivos" o fariam com dosagem extra de cautela, pondo talvez a cortesia profissional e a solidariedade numa carapaça mais camuflada para que o gesto tresloucado não significasse generosa mordida no contracheque mediante a ofensa dos patrões. Pensando bem, é melhor nem pensar nisso.
(*) Jornalista