NAZISMO REDIVIVO
Claudio Julio Tognolli (*)
Indolência com proteínas gera violência. Sei disso. Já fui delinquente juvenil. [Paulo Francis, O Brasil no Mundo, Zahar, 1985]
O sobrenatural, se ocorre duas vezes, deixa de ser aterrador, notou Jorge Luis Borges. Nada mais sobrenatural, aos olhos da multidão, do que um jovem de classe média, como quem chupa um picolé de uva, afiar o seu olhar oculto, de heliotrópio, alçar mira e resolver meter fogo em seus colegas ? para depois, mirando sua pálida fronte, cercada de dificuldades, meter-se um balaço na mente.
Mas, falando a verdade, nem tão pálida assim seria a fronte. E tantas e tamanhas não seriam as dificuldades. Afinal Edmar Freitas, 18 anos, o protagonista da barbárie, era até chamado de "vinagre" pelos colegas de classe ? dadas as faces rosadas. Nasceu em Taiúva (SP), pacata cidade de 5 mil habitantes perto de Ribeirão Preto, a 363 quilômetros da capital paulista. Era gordo. Emagreceu. Tinha o apreço dos pais. Não enfrentava dificuldades de sobrevivência no país do Fome Zero.
Edmar invadiu a escola. Com 15 disparos, feriu seis alunos, uma professora e o caseiro . Matou-se com um tiro na cabeça. Tinha no bolso 89 balas. Em casa, guardava uma arma calibre 22 (poema de John Lydon, pai do movimento punk, e um dos ídolos do estudante: "inside your head, point two two led" (dentro de sua cabeça, chumbo calibre 22).
Na edição passada deste Observatório [n? 209], Alberto Dines chamava atenção para o episódio, referindo as ora pontuais, ora sincopadas, mas sempre presentes manifestações de nazismo entre os jovens [remissão abaixo]. Edmar cultuava a Hitler. Agora a polícia de Taiúva quer saber se mais adolescentes da cidade o ajudaram no funesto mister do culto nazista.
Inatural? Nem tanto. O ideário nazista drapeja por aí, a torto e a direito. Inatural, isto sim, ou melhor dizendo, naturalíssima, foi a cobertura da imprensa do episódio. Se uma das feições mais insinuantes da mídia é a fragmentação, aqui a tivemos de uma maneira que vale estudo de caso. O episodio Taiúva resumiu-se a um caso de polícia. Isolado no tempo e no espaço, e mostrado pela mídia como se não tivesse ligação a tendências ou acontecências iguais e pretéritas.
Mundo caleidoscópico
Ninguém se lembrou, por exemplo, que em 1990 o estudante de História Ivan Guidi Ferreira comandou em São Paulo a edição de dois skinzines ? os fanzines nazistas, intitulados Orgulho Paulista e Determinação e Coragem ? cujo culto levou uma dúzia de jovens desesperados a atacar a Rádio Atual e o Centro de Tradições Nordestinas, na zona norte da cidade. Por detrás da rede montada pelos estudantes, que andavam armados, estavam conexões com grupos neonazistas de Portugal ? em Apartado, Lisboa ? e com o grupo de skins flamenco-bretão chamado Having a Laugh.
Ninguém se lembrou nessa cobertura de Taiúva que caso semelhante ocorreu numa escola de Columbine, em Denver, Colorado, no dia do aniversário de Hitler: em 20 de abril de 1999. Os adolescentes Dylan Klebold & Eric Harris feriram e mataram, nas estatísticas gerais, mais de 30 estudantes.
Os personagens Eric, Dylan e o nosso nazista caipira são incrivelmente parecidos em seus ethos. Os moleques americanos também colecionavam armas, guardavam fotos de Hitler e se vestiam de preto. Com o detalhe que cometeram o massacre, em 20 de abril, ao som de Marylin Manson ? aquele personagem frankensteiniano, da música pop americana, que afeta androginia, só se veste de preto e acha que é uma mistura de Monroe com o assassino de Sharon Tate, daí o seu nom de guerre…
As frases proferidas pelo nosso adolescente de Taiúva, que não gostava dos apelidos que lhe davam na escola, parecem da mesma linhagem daquelas que o FBI coletou nos computadores de Eric e Dylan, após o massacre: "Gostamos de ser diferentes. E vamos matar tudo e todos que tiram sarro de nós. Estragamos e estragaremos tudo o que nos desagrada". Uma página especial foi montada para acompanhar, ainda , os desdobramentos de Columbine, e pode será vista em <http://massmurder.dyns.net/eric_harris_dylan_klebold.htm>
Há quem diga, nos estudos teóricos, que isso é um sinal dos tempos, já que estaríamos vivendo o fim daquilo de Stendhal chamava de promesse de bonheur (promessa de felicidade) ? e o que estaria acontecendo mesmo seria aquilo previsto por Max Weber como sinnerlust, ou um desencanto geral. E, num processo desses, num mundo cada vez mais caleidoscópico, velhas ideologias, mesmo as sepultadas pela história, estariam servindo de espiráculo para jovens.
Teóricos dirão: no fim de um mundo bipolar, em que a ideologia muda na rapidez do zapping da televisão, cabeças juveniilistas fariam de seu pensamento uma extensão do controle da televisão ? (lembremos, nesse mundo caleidoscópico, de Íxion, herói tessálio condenado por Júpiter a fazer girar eternamente uma roda ardente à qual estava amarrado). Ideologias perdidas são para o juveniilismo a Fata Morgana da vez ? aquela semivadeante e gasosa miragem que se produz nas costas da Calábria.
Bíblia & Constituição
Fim de ideologia não é novidade. O termo, originalmente, foi criado por Albert Camus. Gerou "n" obras, dos anos 1950 para cá: O Deus que Falhou, de R. H. Crossman (com textos de Koestler, Silone, Gide, entre outros); um punhado de ensaios de Arthur Koestler e Ignazio Silone, o famoso O Ópio dos Intelectuais, de Raymond Aaron e, last but not least, The End of Ideology on the exhaustion of Political Ideas in the Fifties, de Daniel Bell, lançado em 1960 em primeira edição e agora relançado pela Harvard Uviversity Press. O problema é que, hoje, avançou a interpretação do fim das ideologias, que ora ganha o status de perda de sentido, de irracionalismo, sobre o que há o belíssimo extrato de Sérgio Paulo Rouanet:
"Não podemos falar em clima irracionalista sem falar em atores que o defendam ou em suportes que o sustentem. Um tanto impressionisticamente, diríamos que esses suportes incluem, por exemplo, subculturas jovens, em que o rock funciona como instrumento de sociabilidade intragrupal e de contestação geracional do sistema. Nelas, os estereótipos de uma formação livresca são contrapostos a imagem da educação pela própria vida. Reconstitui-se, espontaneamente, sem que os jovens saibam disso, a polarização clássica entre a vida e a teoria, que floresceu, por exemplo, no Sturm und Drang, no romantismo, no atual movimento ecologista e em outras correntes direta ou indiretamente influenciadas pela máxima de Goethe ?cinzenta é toda teoria, e verde apenas a árvore esplêndida da vida?. Incluem também alguns intelectuais, que não hesitam em desqualificar a razão, de modo quase sempre indireto, sob a influência de certos modismos, como a atual vaga neonietszchiana. E incluem determinados movimentos e partidos políticos, que tendem a recusar a teoria e fetichizar a prática. Teríamos assim, do ponto de vista dos atores, algo como um irracionalismo comportamental, um irracionalismo teórico e um irracionalismo político".
Poderia-se ainda teorizar o tema naquilo que Nietzsche chamava de ketten-denken, ou pensador em cadeia, o que serve para todo aquele que adapta, à sua maneira, qualquer estrato ideológico perdido por aí (ver aforisma 376 de Humano, Demasiadamente Humano).
O que a imprensa portanto não fez foi colocar nessa perspectiva o acontecido em Taiúva. Senão vejamos, indo agora para a apuração: o ATF, o Birô de Armas e Tabaco dos EUA, é o órgão responsável por combater milícias armadas no país, onde estima-se haver 300 delas ? a maioria com ideário nazifascista misturado a nacionalismos fundamentalistas ianques. Este repórter visitou, em 1997, a convite do Departamento de Estado dos EUA, o museu das milícias do ATF, em Washington DC. É de causar escárnio: aquilo que Nietzsche chamou de ketten-denken nunca foi tão real. Milícias armadas misturam todo o tipo de ideologia com a Bíblia, com a Constituição dos EUA, mais pitadas generosas de intolerância e violência, e saem por aí matando tudo o que se lhes aborrece. Quem vê, fica pasmo. Algo parecido com aquilo que Paulo Mendes Campos, num poema, chamou de o caótico "pontilhismo dos estádios de futebol". Ou seja: mil cabeças, mil ideologias.
Armas de fogo
A mídia não contextualizou o episódio de Taiúva. Vejamos o quesito de estudantes com armas: de acordo com pesquisa doe US Secret Service National Threat Assessment Center (NTAC), dois terços de 41 estudantes envolvidos em 37 casos de tiros em escolas, desde 1974, pegaram as armas de suas próprias casas ou de algum parente.
A entidade Coalition to Stop Gun Violence estima que há 192 milhões de armas em mãos privadas nos EUA (65 mihões de revólveres, 49 milhões de escopetas, 70 milhões de rifles), dos quais os revólveres são responsáveis por 80% de todos os homicidios.
As armas não são distribuídas em massa. Menos de 10 milhões de pessoas possuem metade dessas armas nos EUA, com 34% dos proprietários de armas possuindo mais de 4 armas.
O American Journal of Public Health diz que 43% dos lares americanos com armas e crianças dispõem ao menos de uma arma com livre acesso e sem nenhuma trava no gatilho. Além disso, um total 13% dos lares americanos com crianças e armas (1,4 milhão de lares com 2,6 milhões de crianças) guardam suas armas de forma a elas serem facilmente acessíveis.
Segundo a rede American Political Network, quase 4,2 mil adolescentes entre 15 e 19 anos são mortos por ano, com armas, nos EUA ? ou cerca de 11 por dia.
Vejamos os dados do Brasil fornecidos por aquele que é tido como o maior criminólogo do país, o cientista político Túlio Kahn. Diz Kahn que o Brasil é não só um dos países que tem uma das maiores taxas de homicídios por 100 mil habitantes como também é o país com a maior proporção de homicídios cometidos com armas de fogo. Num estudo preparado pelas Nações Unidas abrangendo 69 países desenvolvidos e subdesenvolvidos, constatou-se que nada menos que 88,39% dos homicídios brasileiros são cometidos com armas de fogo, o campeão entre todos os pa&iaciacute;ses pesquisados: num universo de cerca de 50.000 homicídios perpetrados em 1996, 45.000 o foram com armas.
Esta proporção é corroborada por outras fontes: o anuário 1997 do DHPP de São Paulo, que trata somente dos homicídios de autoria desconhecida, informa que, naquele ano, a arma de fogo foi o instrumento utilizado em 91% das mortes (4.255 em 4.684 homicídios).
Esta mesma pesquisa apontou que 90% dos roubos praticados no Brasil o são com a utilização de armas de fogo (225.000, num universo de 250.000 roubos e furtos em 1996). Esses números fariam do Brasil um dos países com maior proporção de roubos com armas de fogo entre os 69 pesquisados. "Lembre-se todavia que estamos falando dos roubos notificados e que existe uma tendência de notificação maior dos crimes mais sérios, como os cometidos com armas de fogo. Isto pode explicar as diferenças entre as taxas oficiais e as encontradas nas pesquisas de vitimização", diz Tulio Kahn.
Participação culposa
Explicações para a legitimação pelo nazismo e pelas armas não são novas: estão em Sighele, Le Bon, Freud, Ortega y Gasset. Ganharam talvez mais notoriedade didática quando, em 1941, Erich Fromm escreveu Escape from Freedom ? em que aponta que o caráter sadomasoquista, típico da classe média alemã, encontrou uma saída no Partido Nazista; também.foram elevadas à enésima potência pelo Theodor Adorno de A Personalidade Autoritária (1950), em que conecta indivíduos "rígidos e compulsivos" à busca pelos valores autoritários. Essa visão crítica ganhou um quê de modernidade no Harold Laswell de Psychopathology and Politics ? para quem o complexo de culpa dos adolescentes quanto ao sexo estaria sublimado nos movimentos paz e amor.
Voltando ao "Hitler de Taiúva": lembremos também que há sete anos o fuzileiro naval Tim McVeigh colocou as bombas no Oklahoma Building, justamente na véspera do aniversário de Hitler (McVeigh confessou a Gore Vidal ? em entrevista publicada na The Nation, uma semana antes de morrer ? que se considerava um patriota contra os EUA…).
Todos esses personagens são, sem exceção, filhos espirituais de Hitler, ou de, digamos, personagens bizarros como Eldridge Cleaver, prisioneiro acusado de estupro, fundador dos Black Panthers ? e autor do incensado, entre os bárbaros, livro intitulado Soul on Ice ? até hoje best seller entre os juveniilistas dos EUA e da Europa. Tudo isso, hoje, acrescido de pitadas específicas de misticismo, ocultismo, holismo e desbundes de perversidades midiáticas. (Só é "gente" quem aparece na TV ou na foto da revista, não importa se pelo atalho da bunda exposta ou pela vida pessoal devassada ao osso.)
Enfim, misturando reportagem, dados e teoria pura vê-se que toda essa angulação sairia do episódio Taiúva, caso posto em perspectiva e conectado, como deveria ser, a casos afins. Mas a mídia tratou o episódio naquele antigo conceito de Roland Barthes, o fait divers, ou fatos diversos ? que ocorrem a todo o momento e morrem ao sabor dos segundos. É por isso que os "Hitlers de Taiúva" pipocam volta e meia: deveriam ser tratados como uma metonímia social (a parte fala pelo todo). Mas nossa mídia assim não vê: ela também tem uma participação, ainda que culposa, nesses homicídios qualificados. Tratou um caso emblemático, recorrente, como mais um boletim de ocorrência.
(*) Jornalista, professor de jornalismo, mestre em psicanálise e doutor em filosofia das ciências
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