MÍDIA GAÚCHA
José Fonseca (*)
Frustração talvez seja a carga mais pesada na vida de um homem. (Uma ente duas mulheres talvez concorde.) Com a perda do governo do Rio Grande do Sul para o PT, as forças privatistas globalizadoras que saíram do Piratini para dar lugar ao radicalismo democrático tiveram aparentemente a experiência mais frustrante de suas vidas. O governador que saía recusou-se até a transmitir o cargo ao novo ocupante do palácio. Desencadeou-se daí outra novidade histórica: a maior campanha de oposição já sofrida por um governo, articulada em torno do maior grupo de imprensa destas plagas.
Esses fatos não passaram despercebidos da população, mas, editados com a naturalidade de qualquer ação dos poderosos, freqüentemente com prepotência, quase sempre com arrogância, montados nas versões mais capazes de prejudicar a imagem de um governo popular, vital, participativo, criaram uma corrida de obstáculos tão fenomenal que só um adjetivo poderia qualificar este aspecto do governo Olívio Dutra: heróico.
Agora, circula na internet um manifesto "pela liberdade de imprensa e pelo estado de direito", assinado por 35 homens e seis mulheres e que poderia contribuir para a construção de uma sociedade verdadeiramente democrática, se não misturasse alhos com bugalhos. Provavelmente, boa parte dos manifestantes assinou sem pestanejar, e sem compreender o que se passa com o mundo globalizado de seus sonhos, onde grassa a miséria, a violência e a corrupção, apesar de estarem sendo obedecidas todas as ordens do capital especulativo.
"Uma sociedade democrática baseia-se no pluralismo, na tolerância, no respeito às leis e no comprometimento com o bem-estar de todos os seus membros", diz o manifesto. Certo, entre outras bases. Infelizmente, o manifesto coroa um rancoroso bombardeio de mais de três anos com um vício de raiz: nasceu da intolerância. Respeito às leis: o episódio fala por si ? rebela-se o pequeno grupo contra a lei. Faz o discurso do pluralismo nas trincheiras da hegemonia corporativa. Defende o bem-estar de todos os integrantes de sua sociedade democrática, aliados ao governo que nos legou o apagão, a dengue e um mar de escândalos que se traduzem sempre em mais exclusão social.
Sobrou para a OEA
"Se os seus pilares estão ameaçados, é todo o edifício que pode ruir." Sem dúvida. É a lei da física. Mas, as torres gêmeas ruíram e o capitalismo continua. Há, pois, que se perguntar: que edifício é este? "Há, portanto, coisas sobre as quais não se pode transigir, sob pena de comprometermos o nosso futuro." Que intransigência e que futuro são esses a que se refere o manifesto? Se não houvesse no cerne deste movimento uma dependência com a inversão de todos os valores, para justificar a venda do patrimônio público, a destruição das reservas naturais e a entrega do tesouro nacional a bancos amigos e a banqueiros, poderíamos, sim, falar em pluralismo, tolerância, respeito às leis e comprometimento com o bem-estar de todos como pilares. Então, a obscura anunciação das "coisas sobre as quais não se pode transigir, sob pena de comprometermos o nosso futuro" precisa de cuidadoso estudo. Não querem transigir sobre o quê? Por que se sentem ameaçados? São intransigentes na defesa de um modelo falido da civilização de consumo, restrito a poucos. Querem, no lugar das florestas que nos permitem respirar, construir pátios de automóveis?
Querem a liberdade de apropriar-se dos meios de comunicação? Liberdade para difamar? Liberdade para poluir? Continua o manifesto: "A recente condenação dos jornalistas Marcelo Rech e José Barrionuevo, numa ação movida pelo governador Olívio Dutra, é um fato inquietante." Sim, é inquietante que um governador da estirpe de Olívio Dutra seja levado a mover ação contra jornalistas. Como? Por quê? Basta ler o processo, o que nem todos, aparentemente, fizeram. Tampouco se lembraram de mencionar outro pilar da sociedade democrática: a Justiça. Olívio Dutra processou os jornalistas por respeito próprio e por respeito às leis. A condenação foi mera conseqüência.
A sentença condenatória de Rech e Barrionuevo é auto-explicativa. Será por isso que os manifestantes evitam citá-la? Será por isso que se publicam agora versões expurgadas dos artigos difamatórios?
"No presente caso", diz a sentença da juíza Isabel de Borba Lucas, emitida em 6 de junho de 2002, "ambos os réus, jornalistas da RBS, vieram a público e mostraram sua indignação relativa a um fato efetivamente lamentável ? o relógio construído para homenagear 500 anos do Brasil, que marcou a contagem regressiva até a data de 22 de abril de 2000, patrocinado pela RBS, iniciativa da Rede Globo de Televisão, foi destruído por um grupo de pessoas que podem sim ser chamadas de vândalos. O episódio foi de uma violência que horrorizou a todos e as fotos acostadas aos autos com a fita trazidas pelos réus comprovam o absurdo de tudo. Ocorre que, diante da posição do senhor Governador do Estado, como está na nota oficial noticiada no próprio jornal do dia 25.04.2000, data em que foi escrita pelo réu Marcelo Rech a ?Opinião da RBS?, texto em análise, posição reforçada como está nas folhas 277 a 279. Ambos os réus não só manifestaram sua indignação com os fatos, mas fizeram acusações ao Governador Olívio Dutra. A indignação dos réus com relação aos fatos ocorridos é proporcional à violência e ao vandalismo dos protagonistas destes fatos, porém, quanto às acusações contra o governador não há esta proporcionalidade quanto ao que por ele foi dito. Parece que, influenciados pelo ocorrido, usaram os réus da mesma violência do episódio para fazer seus comentários dirigidos ao Governador do Estado. Na verdade. o Governador Olívio Dutra, diante dos acontecimentos, disse lamentá-los e afirmou respeitar as manifestações de inconformidade das pessoas ?com a situação no Brasil?, referindo que ?Isso que aconteceu aqui não foi diferente do que aconteceu em várias situações e locais no país?. Ora, estas declarações são de oposição, a oposição que o governador representa, e, como é público e notório, é discurso de seu partido, o Partido dos Trabalhadores. O seu próprio depoimento, folhas 414 a 418, segue este discurso: ?A minha posição é de que os movimentos sociais têm que ter direito em um estado democrático e de direito de manifestarem as suas opiniões, se posicionarem?. Aliás, neste depoimento, onde a defesa teve total abertura por parte desta magistrada para indagar o que quisesse sobre outros episódios ocorridos e de repercussão, episódios polêmicos, abertura proposital para que, em momento algum, fosse alegado cerceamento de defesa, seguiu o governador sempre sua linha de raciocínio e seu posicionamento. É o seu pensamento, é o pensamento de seu partido. Então, os réus, jornalistas experientes e de renome, parecendo ignorar este aspecto, tiraram conclusões sobre a conduta do governador, conclusões estas que. em resumo, colocaram-no na condição de partícipe do episódio da destruição do relógio dos 500 anos."
Será que, aos autoproclamados defensores da liberdade de imprensa, interessam menos os fatos e artigos difamatórios veiculados pela RBS do que a possibilidade de assediar um governo que ameaça seus privilégios? "O atual governo e o seu partido têm pautado suas ações por uma longa série de perseguições e processos contra jornalistas e intelectuais." Não seria o contrário? Não teria sido o grupo que esses jornalistas representam o pauteiro da mais longa série de ataques a um governo legitimamente eleito de que se tem notícia neste estado? A afirmação, gratuita, soa como queixa de quem não aceita nem limites para si, nem direitos para outrem. "Inclusive organizações, como a OEA, têm assinalado que nossa liberdade de imprensa padece de problemas graves." Sobrou para a Organização dos Estados Americanos, que aqui entra como Pilatos no Credo. É claro que há problemas. Em nenhum estado de direito a liberdade pode ser privilégio de poucos.
Zelo de arapongas
"Uma sociedade na qual a liberdade de imprensa seja suprimida ou grandemente restringida torna-se uma sociedade escrava, e nela a intimidação converte-se em regra." Neste caso, como sustentou o Ministério Público, "o direito de crítica, alegado pelos réus, não pode ser exercido sem limites". Prossegue o MP: "Analisando o que os réus disseram, sempre dentro do contexto relativo ao episódio e tomando em consideração as expressões usadas, a conclusão é que ofenderam publicamente o Governador do Estado, cujas manifestações, folhas 277/278 e 279, não demonstraram que compactuasse com a violência da destruição do relógio. Houve desproporção entre o que disse o ofendido e o que disseram os réus, que adentraram o terreno da insulto, ultrapassando os limites da crítica." Lembra a juíza: "Em nosso direito positivo, como ensina Darcy Arruda Miranda nos seus Comentários à Lei de Imprensa, 3? edição, RT, é Nelson Hungria quem bem define o delito: ?A difamação consiste na imputação de fato que, embora sem revestir caráter criminoso, incide na reprovação ético-social e é, portanto, ofensivo à reputação da pessoa a quem se atribui.? São elementos do delito, segundo o mesmo autor antes referido, mesma obra: ?a) imputação de fato determinado e ofensivo à reputação de alguém; b) divulgação desse fato pela imprensa falada ou escrita, ou seja, a publicidade; c) o dolo?."
"Quando os meios de comunicação passam a policiar-se, a liberdade de cada um está comprometida." Esta noção capciosa dos manifestantes é traficada para fora do contexto da responsabilidade que deve orientar a ação dos meios de comunicação. Como podem confundir um ato de responsabilidade em relação às suas próprias ações e palavras com um autopoliciamento comprometedor da liberdade? Por ignorância ou má fé? "De nada adianta alardear a palavra ?cidadania? como marca de um governo e de um partido, se essa palavra estiver inteiramente comprometida com um uso ideológico, que visa apenas dar respaldo a uma forma autoritária de dominação." Esta retórica desideologizante enquadra-se como uma luva no processo de inversão de valores, pelo qual os manifestantes pretendem atribuir erros e práticas condenáveis, das forças que representam, a adversários.
"Conclamamos, isto sim, pelos verdadeiros direitos dos cidadãos, como as liberdades públicas, a paz e a segurança, nas cidades e no campo." A analogia entre verdadeiros direitos, liberdades públicas, paz e segurança com o pretenso direito de difamar é insustentável e exorbitante. Antes de tudo, cuidem os manifestantes de corrigir as diferenças sociais que o neoliberalismo alimenta.
"Presenciamos algo novo na história do Rio Grande que, por suas tradições de bravura e coragem, não pode aceitar a paz que se impõe pelo cerceamento das liberdades." Esta mesma história nos permite entender que os manifestantes se referem ao cerceamento de liberdades exclusivamente suas (deles), ao tomarem as dores dos controladores dos meios de comunicação.
O restante é outra história, montada com o zelo de arapongas para tentar enlamear uma das mais limpas administrações que o estado já teve. "De outra parte, uma funcionária de Diógenes de Oliveira, envolvida com o financiamento do PT via Clube de Seguros da Cidadania, é ameaçada de morte. Ela é então forçada a abandonar o estado sob a proteção da Polícia Federal, pois não mais crê nas instituições gaúchas. Suas declarações e os documentos apresentados mostram a necessidade de continuação da CPI da Segurança Pública. Melhor, exigem que esses trabalhos sejam retomados com a firmeza e a perseverança daqueles que buscam a verdade. O PT alega ter pautado suas ações passadas na defesa da ética na política." Despeito? A despeito dos erros, insignificantes por comparação aos das forças neoliberais, e que até por isso precisam a qualquer custo ser corrigidos, nenhum outro partido político tem as reservas morais e éticas do PT. Ponto pacífico.
O carro à frente dos bois
"Quando mais não seja por um mínimo de coerência, deveria abandonar sua postura de tudo denegar. Por muito menos, membros de outros partidos foram exaustivamente investigados na área federal. Os fatos são graves e exigem apuração isenta." Alguém aí prega filosofia moral de cueca? "Afirmações de que se trata de um conluio da direita ou de transações entre particulares seriam risíveis se não fossem proferidas por altos dignitários do partido. A ética não tem cores partidárias, mas repousa em um comprometimento imparcial com a coisa pública e com o bem de todos os cidadãos", continua o manifesto. Perdeu-se o discurso em si mesmo.
"Os signatários estão profundamente preocupados com a situação atual do Rio Grande. Também estão conscientes de que o silêncio pode significar a submissão. Por isso, se vêem na obrigação de manifestar-se publicamente em favor do respeito às liberdades democráticas e em defesa da ética na política." Os signatários não seriam todos tão ingênuos a ponto de imaginar ser possível, numa sociedade minimamente politizada e livre para receber informação, misturar sempre alhos com bugalhos e vender sempre gato por lebre.
Há, certamente, uma razão mais profunda por trás de sua manifesta frustração. Nunca houve tantas fortunas a serem feitas no jogo da privatização como na hora da virada de rumos. Ainda pudemos salvar o banco do estado e algumas empresas vitais, como a de água e energia elétrica. Os grupos privados não puderam levar todo o patrimônio público para a sua seara. Mas por que a histeria difamatória baseada no episódio da destruição de um objeto? Nunca se viu, nesse meio, semelhante indignação ante a destruição de vida, humana ou de outras espécies. É altamente simbólico o fato deste ataque ter sido armado em torno de um infame relógio. Um relógio da Rede Globo, lamentavelmente destruído por cidadãos irados contra algo que os signatários não entendem ou não ousam apontar.
Os vândalos dessacralizaram não apenas o maior símbolo brasileiro do totalitarismo da informação, que introduziu o pensamento único até no futebol, nesta Copa do Mundo. No subconsciente dos idealizadores deste manifesto, um símbolo ainda maior foi destruído. Adivinhe se puder: no altar do lucro, em que oram os neoliberais, sobraram cacos de quê? Absolutamente certo! De um relógio. O marcador do tempo. O marcador de todo o tempo, pois que da Rede Globo. E tempo, cara pálida, é dinheiro. Time is money. Sem este governo heróico, até o dinheirinho da agricultura familiar seria da Ford, e teríamos ainda neste estado o carro na frente dos bois.
(*) Jornalista