ARTE & ILUSTRAÇÃO
Breve história ilustrada da xilogravura, de Antonio Fernando Costella, 75 pp., Editora Mantiqueira, Campos do Jordão, 2003; telefones (11) 287-0734 e (12) 262-1832
O livro reproduz e comenta xilogravuras que retratam os principais momentos históricos da arte de impressão feita com matrizes de madeira: desde suas origens no Oriente e primeiros tempos na Europa, até à xilogravura artística do século 20. Passando pelos livros xilográficos e pelo nascimento da tipografia, a obra ocupa-se também da ilustração bibliográfica européia, sem esquecer a grande contribuição japonesa. Com relação à xilogravura no Brasil, são mostrados trabalhos de impressão corporal dos índios, cartas de baralho do século 19 e a participação dos xilógrafos na literatura de cordel, além dos pioneiros de nossa xilogravura de arte propriamente dita.
A seguir, a reprodução dos capítulos 11 e 12 de Breve história ilustrada da xilogravura.
Literatura de cordel e xilogravura
No final do século dezenove, os cantadores de versos principalmente do nordeste brasileiro, aproveitando o tempo ocioso de pequenas tipografias interioranas, ou recuperando equipamentos antigos substituídos por máquinas mais modernas, puseram-se a produzir folhetos impressos, nos quais fixaram, tipograficamente, as suas poesias. Como esses folhetos, usualmente oferecidos à venda nas feiras, ficavam em exibição dependurados em barbantes, passaram a ser conhecidos pelo nome de "literatura de cordel".
Embora, nessa época, o clichê metálico já existisse, seu emprego no sertão era problemático, pois precisava ser encomendado às clicherias, e estas eram encontradas somente nas cidades grandes, distantes.
Daí, os modestos folhetos de cordel encontraram na xilografia um recurso de ilustração que revelou-se acessível, barato e eficiente para enriquecer-lhes as capas, e, encomendando matrizes durante décadas, estimularam a formação de uma plêiade de xilógrafos populares.
Entalhando principalmente em tábuas de umburana, madeira dócil, sem fibras, que permite liberdades no corte ao fio, esses xilógrafos espontâneos inspiraram-se no imaginário popular e o enriqueceram por meio de sua arte.
Com o passar do tempo e a evolução dos meios de comunicação, o cordel tipografado começou a sofrer a desigual concorrência de novas técnicas de impressão e de outros veículos de informação e entretenimento, e em conseqüência teve, inúmeras vezes, anunciada a sua morte iminente. Valendo-se, porém, até das novas técnicas rivais, o cordel tem conseguido sobreviver às funestas profecias.
Os xilógrafos populares, que também tiveram o seu futuro ameaçado, desmentiram, entretanto, a visão mais pessimista. Passaram a produzir, a par da ilustração para folhetos de cordel, matrizes destinadas a outras finalidades, como, por exemplo, rótulos de variados produtos do mercado local ou anúncios criativos para veiculação em pequenos jornais regionais.
No dizer do pesquisador cearense Gilmar de Carvalho, os xilógrafos populares criaram assim "as bases de um design popular e sertanejo".
Outra alternativa, para os xilógrafos populares, tem sido a produção de gravuras não apenas com o fim utilitário de ilustração para cordel, mas como peças autônomas destinadas ao desfrute estético de colecionadores. Estes têm sido atraídos para a arte xilográfica popular pelo crescente interesse dos meios acadêmicos nacionais e estrangeiros, sendo um dos exemplos, nesse sentido, a publicação na França em 1965, por iniciativa do pesquisador Robert Morell, de uma via sacra do Mestre Noza, nome pelo qual ficou conhecido o pernambucano Inocêncio da Costa Nick (1894-1984).
Com o estímulo dos novos apreciadores, têm sido freqüente a impressão de álbuns de vias sacras e de outras coleções temáticas, bem como a multiplicação de xilogravuras avulsas, isto é, obras de arte autônomas, em formato maior, que galgam, devidamente enquadradas, as paredes de residências sofisticadas ou chegam a se entronizar em acervos de museus.
Dessa forma, a xilogravura de origem popular converge, em parte, para a órbita da gravura erudita. No caminho inverso, alguns autores de gravura erudita tem ido buscar inspiração temática e estilística junto às obras geradas pela irmã popular, modesta, mas muito criativa.
Pioneiros da libertação no Brasil
Também no Brasil, tanto quanto na Europa, à exaustão da xilografia de ilustração sucedeu um florescimento da xilogravura "liberada". Alguns artistas, executando eles mesmos tanto o trabalho criativo quanto as fainas de entalhe e impressão, tomaram a xilografia como forma de expressão artística livre, sem encomendas, sem limitações ou constrangimentos. E a madeira retribuiu generosamente.
Pode ser lembrado, como remoto precursor da nova fase, Giovanni Cattaneo Ricardi. Embora fiel à técnica de topo para ilustração, pressentiu a possibilidade de um vôo mais livre para a xilografia. Mas não chegou a realizá-lo.
Esse vôo teve início com Lasar Segall (1891-1957), e alçou-se a níveis elevados. A par de sua obra de pintor, Segall produziu uma notável coleção de xilogravuras, de marcante estilo expressionista, criadas ao longo de mais de três décadas e cujo ápice ocorreu no início dos anos quarenta, com as gravuras da série Mangue.
Na época de pioneirismo da xilogravura artística brasileira sobressai, destacamente, o vulto de Oswaldo Goeldi (1895-1961).
Nascido no Rio de Janeiro, Goeldi estudou na Europa a partir de 1917, onde hauriu a influência de Munch e Kubin, e voltou ao Brasil a tempo de engrossar as hostes da Semana de Arte Moderna, em 1922. Dedicando-se à gravura, publicou em 1930 o álbum Dez gravuras em madeira, no qual já revela personalidade artística madura e densa. Entusiasmado com a xilografia, passou a produzir intensamente e, ao longo da vida, entalhou algumas centenas de matrizes. Mesmo quando suas xilogravuras foram feitas de encomenda, para capas ou ilustração de livros, elas demonstram a liberdade característica de suas obras avulsas. Com seus trabalhos de viés expressionista, nos quais, segundo Anibal Machado, "o realismo está sempre de passagem para o fantástico", Goeldi não poderia empolgar o grande público, então mais afeito ao academismo. Gozou, entretanto, do reconhecimento da crítica, tanto que recebeu o prêmio de Melhor Gravador Nacional, em 1951, na I Bienal de São Paulo. Morreu no Rio de Janeiro, onde lecionou na Escola Nacional de Belas Artes, e deixou uma forte e duradoura influência para toda uma geração de novos gravadores brasileiros.
Um dos principais pilares dessa nova geração de xilógrafos foi o paulista Lívio Abramo (1903-1992). Nascido em Araraquara, iniciou-se no entalhe com Kohler, mas deu logo um rumo novo à técnica do mestre conservador. Já na década de 1930 dedicou-se a temas sociais, ressaltando em linguagem expressionista o ambiente operário. Ilustrou livros com grande liberdade criativa, destacando-se o Pelo sertão, de Affonso Arinos. Em 1950 ganhou uma viagem-prêmio de dois anos à Europa e, na Bienal de São Paulo de 1953, foi eleito o Melhor Gravador Nacional. Com o tempo, suas obras foram se encaminhando para uma linguagem tendente à abstração. Em 1960, abriu o Estúdio Gravura, em São Paulo, mas de 1962 em diante passou a dirigir um atelier e ensinar no Paraguai, como membro da Missão Cultural Brasileira naquele país. Pouco antes de morrer, realizou uma exposição de xilogravuras, talvez a última em sua vida, na Casa da Xilogravura, em Campos do Jordão (SP).
Muitos outros gravadores garantiram, e continuam garantindo, um posto de relevo para a xilografia. Retratar esse amplo panorama, porém, vai além da proposta deste livro. Ao finalizá-lo, entretanto, fazemos questão de externar nosso aplauso a todos aqueles que, lavrando no lenho, enriqueceram, enriquecem e enriquecerão a arte brasileira.