Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A mais perfeita tradução

SÃO PAULO, 450 ANOS

Paulo Lima (*)

Uma das mais famosas fotografias do século 20 mostra alguns homens e mulheres negros numa fila para conseguir emprego nos Estados Unidos, em plena depressão econômica dos anos 1930. Em contraste com o ar de desolação das pessoas retratadas, vê-se, na parte superior da imagem, um cartaz publicitário com uma família sorridente e feliz dentro de um automóvel, uma cena que seria o protótipo do sonho americano. A força desse instantâneo da grande fotógrafa Margaret Bourke-White está evidentemente na ironia, na exposição de uma sociedade que não conseguia ocultar seus abismos, apesar da retórica oficial em torno de um capitalismo defendido como vigoroso e inquebrantável.

Não se pode acreditar inteiramente no truísmo que credita à fotografia a eficácia de mil palavras, mesmo diante de uma imagem poderosa como a de Bourke-White. Há sempre a necessidade de uma explicação que a contextualize. O próprio "verismo essencial", o fetiche da objetividade contida na imagem pode ser posto à prova, uma vez que reflete a perspectiva do fotógrafo, dentro de um outro truísmo: vemos o que queremos ver.

A imagem que a Folha de S.Paulo de 24/1 estampou na primeira página do caderno especial em homenagem aos 450 anos de São Paulo mostra o olhar certeiro de Tuca Vieira e é um contraponto às exaltações que a mídia tem feito em torno das comemorações que transcorrem no Planalto Piratininga. De acordo com o texto-legenda, a foto traz uma região do bairro do Morumbi em que prédios de apartamento de luxo se situam bem ao lado da Favela de Paraisópolis.

Puro contraste

A imagem é de uma ironia extrema, a começar pelo nome dado à favela, muito distante de qualquer paraíso. Num dos edifícios vê-se uma piscina em cada andar. Avistam-se ainda quadras de tênis. O contraste entre as duas realidades é violento, como violento é o cotidiano da cidade. Sem uma legenda que a contextualize, a foto poderia ser tomada como um lugar qualquer na América Latina, ou da Ásia, mas trata-se da capital mais rica deste nosso continente de abismos sociais.

No mesmo caderno especial, é lançada a pergunta: "É bom morar em São Paulo"? Seguindo a regra de ouvir os dois lados da questão, o jornal sondou dois personagens de bairros com realidades distintas, centro e periferia. Diz "não", respondendo pela periferia, o escritor Ferréz, morador de Capão Redondo, autor de Capão Pecado, que retrata o cotidiano violento daquela periferia. Diz "sim", respondendo pelo centro, o escritor Marcelo Rubens Paiva, autor de Feliz Ano Velho. Curiosamente, é como se os discursos dos escritores funcionassem como legenda elucidativa da foto de Tuca Vieira, sendo que uma fala (Ferréz) mostra o lado tenebroso do apartheid paulistano, e a outra (Marcelo Paiva) exalta a sua metade cosmopolita e afluente.

O registro do fotógrafo é a mais prefeita tradução da megalópole quatrocentona que não cabe em si de tantos problemas. É essencialmente didática, carrega na denúncia, mostra as veias abertas, em puro contraste com a chuva de confetes lançada principalmente pela mídia televisiva, que preferiu embarcar na folgança de um trem das onze.

(*) Estudante de Jornalismo da Universidade Tiradentes (SE) e editor do Balaio de Notícias <www.sergipe.com/balaiodenoticias>