Cláudio Weber Abramo
Na época de ouro da ficção científica (cerca de 1950 a meados da década seguinte), quando esse gênero literário ainda não se afogara na tecnologia cinematográfica, escrevia-se muito mais contos (short stories) do que romances.
Um deles, de Cyril M. Kornbluth (publicado em 1955 na revista Astounding Science Fiction Stories, editada por John W. Campbell), é um clássico intitulado "The marching morons". Algo como "A marcha dos idiotas". Implícito, o subtítulo "rumo ao futuro".
Trata-se de uma sátira à disponibilidade do público em ser imbecilizado pela manipulação da mídia e da publicidade. Na situação do futuro hipotético criado por Kornbluth, as pessoas se mostravam crescentemente capazes de acreditar em seja o que for que se lhes era apresentado. Por exemplo, bastava cercar avenidas com telões com imagens de prédios e paisagens em movimento veloz para que os motoristas ficassem convencidos de que seus lentíssimos veículos estivessem correndo a mil.
A cada nova geração, mais crédula a massa se tornava e mais facilmente passava a aceitar novas e cada vez mais elementares crenças injustificadas.
Kornbluth escrevia com base no que interpretava da sociedade em que vivia, a norte-americana do pós-guerra. O conto diz, ficcionalmente, a mesma coisa que os escritos de Noam Chomsky dedicados à estupidificação do público pelo establishment: a história é reescrita, a vida é desideologizada, aquilo que não se encaixa na visão de mundo predominante é suprimido como se nunca tivesse existido.
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Um exemplo, trivial, de como isso chega por aqui: dias atrás, morreu o cosmonauta soviético Gherman Titov, o segundo ser humano a entrar em órbita em torno da Terra, após seu conterrâneo Yuri Gagárin. Titov, como Gagárin, foi um herói da humanidade, não apenas da União Soviética. Pois bem, ninguém deu a menor bola. A notícia apareceu na forma de uma notinha de agência.
Em contraste, há um ou dois anos, numa cerimônia de entrega de Oscars (assistida por centenas de milhões de pessoas, comportamento esse, aliás, incompreensível), um astronauta norte-americano (também um herói, sem dúvida) foi chamado ao palco para entregar um prêmio ao filme Apollo 11. Em seu pequeno discurso, esse astronauta declarou, na maior cara-dura, que os Estados Unidos haviam enviado o primeiro homem ao espaço… Seu discurso foi, é claro, reproduzido sem comentários em telejornais brasileiros. Como os brasileiros em geral acreditam que a Arca de Noé aportou em Miami, por que não adicionar mais esse fragmento a tal perspectiva de vida?
Observações sobre o caráter imbecilizante da TV padrão Globo (o jornalismo em primeiro lugar) talvez já não comovam ninguém. É como uma doença por todas as aparências incurável, sobre a qual é melhor não pensar. Acresce que, como televisão é coisa para as massas, as cabeças pensantes tendem a não assisti-la, a não refletir sobre ela e, portanto, a não criticá-la. De vez em quando, um evento como a famosa edição do debate eleitoral Collor x Lula retira os observadores de sua letargia habitual. Esses momentos, porém, são muito raros. Passa incólume o dia-a-dia do noticiário propositalmente distorcido, da dramatização da notícia de modo a transmitir significados não expressos literalmente no texto, da seleção dos itens a publicar.
Mesmo nas Olimpíadas, em que a cobertura poderia ser um pouquinho mais isenta, aparece o punho fechado de Tio Sam, se me perdoem a expressão ("jurássica", como se diz por aí – mas o que há de errado nisso, exatamente?). O Sportv, emissora da Globo, fez um acompanhamento que poderia ter sido editado para ser publicado nos EUA. Matérias de apoio e reportagens especiais eram todas de produção norte-americana, focalizavam norte-americanos e eram editadas com aquela particular mescla de competência e canalhice que caracteriza as produções para a massa dos EUA: o mundo é centralizado na cidadezinha na qual o espectador vive. Vinhetas com atletas ianques (oops!) do arco e flecha, natação (aqui houve uma exceção, a de um nadador sul-africano surdo-mudo), hipismo, atletismo, foram repetidas si no más para consumo do espectador brasileiro.
É como se falássemos inglês e transacionássemos em dólar. Epa! Mas não é isso mesmo?
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