REALIDADE TRAÍDA
Ivo Lucchesi (*)
É comum atribuir-se ao momento vivido uma carga de intensidade dramática superior a quaisquer outros tempos. A própria mídia se encarrega de emprestar sua colaboração. Todavia, a história vive de um processo, um continuum do qual resulta um enredo e, como tal, faz deslizar pelas páginas da civilização os capítulos devidos. Nem é necessário para o entendimento dessa questão recorrer-se a Hegel ou a Marx.
História é processo e nela estão indivíduos dotados dos mais diversificados interesses e ideais. O teor dramático da existência resulta pois desse inevitável embate. De um lado Hegel e Marx (a dialética e a transformação); de outro, Schopenhauer e Freud (a vontade e o desejo). Não são matrizes teóricas excludentes, salvo para aqueles crentes na verdade tanto absoluta quanto redutora. Nesse caso, tendem a promover um recorte da realidade e sobre ela legislam.
A mídia, na condição de "mediadora", chama para si a tarefa, em princípio nobre, de recolher os acontecimentos, conferindo-lhes variáveis destaques, de acordo com propósitos nem sempre claros. Aí, a "grade midiática" dá início a sua operação pouco nobre, forçando tendências e direcionando focos, abdicando de seu real papel de preservar e fortalecer a democracia, resguardadas as honrosas exceções.
Informar e deformar
Nessa falta de autonomia crítica de que se alimenta a "grade midiática" parece residir o grande impasse. O enfoque dado às matérias selecionadas freqüentemente é operado pela inversão de papéis, atribuindo um aspecto individual ao que seria de caráter sistêmico e processual e destinando tratamento sistêmico ao que seria da ordem do individual e subjetivo. Este, sem dúvida, se revela como um dos mais graves problemas. Vamos ilustrar a questão, com dois quadros: 1) uma proposta de candidatura ao cargo máximo de uma nação parece nascer e vingar com base em surtos individuais. Alguém acorda numa dada manhã e se propõe candidato; 2) uma artista morre inesperadamente por uso indevido de drogas.
Os dois episódios acima traçados acabam sendo objeto de tratamentos inteiramente desconectados do enredo histórico ao qual pertencem. Do primeiro quadro, omitem-se os engendramentos, as estratégias ou armadilhas; enfim, não se vai à verdade mesma da coisa em si. Ao segundo quadro, a mídia confere espetacular cobertura para desaguar em abordagens histriônicas sobre a droga, a juventude perdida, a perda dos valores morais e religiosos e variações sobre o mesmo tema.
Em ambos os casos, a tradução do real é subvertida pela traição. Nesse ponto, informar redunda em deformar. Nas duas cenas, o receptor se torna objeto de um "engano tramado". É a sucessão diária de tal estratégia que concorre para a exacerbação da perda do sentido, transformando os acontecimentos do mundo numa rede desconectada de razão. Esta é a "droga" que abre caminho para as demais. Ou se toca o dedo nessa ferida (em especial, a colaboração do Observatório da Imprensa é louvável), ou continuaremos reféns na espiral do devaneio na qual a razão crítica (kantiana ou não) progressivamente haverá de ser alvo da insensatez.
(*) Professor de Teoria da Comunicação, ensaísta, mestre em Literatura Comparada pela UFRJ e doutorando em Teoria Literária pela UFRJ. Participante do programa Letras & Mídias, exibido mensalmente pela UTV