Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A mídia e a propagação de estereótipos

VIOLÊNCIA URBANA

Operação Rio ? o mito das classe perigosas: um estudo sobre a violência urbana, a mídia impressa e os discursos de segurança pública, de Cecília Coimbra, 278 pp., Editora Oficina do Autor e Intertexto, Niterói, Rio de Janeiro, 2001

Mário Augusto Jakobskind (*)

A questão da violência urbana continua ocupando grandes espaços na mídia e, segundo indicam as pesquisas, é um dos temas que mais preocupam os brasileiros dos grandes centros urbanos. Em termos de mídia, não é de hoje que jornais e veículos eletrônicos de um modo geral ocupam-se da matéria em espaço nobre, algo que dificilmente acontecia em décadas anteriores.

Mesmo continuando a existir os veículos impressos específicos sobre a questão da violência, estes, hoje, já não exercem tanta influência como em outros tempos, o que poderia em princípio parecer uma contradição. Mas se o fenômeno for analisado com mais atenção confirmará o fato de a problemática ter ganho novas dimensões.

Muito se tem escrito sobre a violência urbana, principalmente em antevésperas de campanhas eleitorais. Já houve até candidatos que se elegeram prometendo demagogicamente acabar com a violência em seis meses. E, claro, não conseguiram. Poucos são os analistas e pesquisadores que abordam a questão sem os velhos e batidos estereótipos que, na verdade, só fazem esconder as grandes contradições da sociedade brasileira.

Uma dessas exceções acaba de ser lançada nas livrarias: Operação Rio ? o mito das classe perigosas: um estudo sobre a violência urbana, a mídia impressa e os discursos de segurança pública, de autoria da psicóloga e professora universitária Cecília Coimbra. Uma das fundadoras do grupo Tortura Nunca Mais ? atualmente sua vice-presidente ? e coordenadora da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia, Cecília Coimbra tem-se dedicado a estudar e pesquisar as mais diversas formas de violência. Ela, aliás, conhece de perto uma das manifestações mais abjetas de violência que vem do Estado, a da tortura, quando esteve presa em 1970 nas dependências do DOI-Codi, pelo fato de se insurgir contra o arbítrio, como tantos outros jovens na época. Hoje, essa prática que ela conheceu in loco persiste nas delegacias de polícia e atinge os setores mais pobres da sociedade, um dos temas analisados em Operação Rio.

Pobres e subversivos

O livro, de 278 páginas, lançado pela Editora Oficina do Autor e Intertexto de Niterói, analisa a intervenção do Exército no Rio de Janeiro, entre janeiro de 1994 e maio de 1995, e desarma uma série de mitos que continuam sendo difundidos pelos órgãos de imprensa. O primeiro deles é o de que a ocupação pelas Forças Armadas dos locais ditos perigosos acabaria com a violência urbana. E o que acontece na prática, segundo a autora, é que essa ocupação se volta contra a população pobre.

Para melhor entender o que acontece atualmente, na introdução do seu livro a militante dos direitos humanos faz um apanhado histórico, a partir do final do século 19, sobre as teorias racistas, consideradas científicas, mas que na verdade não o são e que penetram na cabeça de todos; a da eugenia, que cuida da "raça pura superior", além da higienista, em que os médicos vão dizer que a pobreza precisa aprender regras de higiene, que os pobres não podem cuidar dos filhos etc. "Como se a pobreza gostasse de sujeira", assinala Cecília, que no livro mostra "como as teorias pseudocientíficas continuam presentes nos dias de hoje. Em um paíiacute;s que teve quase 300 anos de escravidão, elas não passam impunes".

E qual o papel da mídia nessa história? Cecília aprofundou suas pesquisas nos principais jornais do eixo Rio-São Paulo (Folha de S. Paulo, Estado de S.Paulo, JB e O Globo), de janeiro de 1994 até maio de 95. "Detive-me em reportagens sobre a violência no Rio, editoriais e cartas de leitores. Quis mostrar como os veículos prepararam a população para aceitar e aplaudir a Operação Rio e como produzem verdades, do tipo quem é o vilão e quem é perigoso, e esquecimentos." Sem sombra de dúvida, observa a autora, os estereótipos em relação aos pobres de hoje são os mesmos que foram utilizados para os "subversivos" de ontem.

Preparando o espírito

Na página 54 de Operação Rio há a transcrição inédita de um documento reservado do Centro de Informações da Aeronáutica (Cisa). Eis alguns trechos:

"A imprensa noticia e os órgãos de informação costumam referir-se aos bandos terroristas e subversivos que agem no território nacional como ?Organização?. É comum ler-se que a Organização VPR, a Organização ALN etc. realizou essa ou aquela ação? A conotação que o termo ?Organização? sugere é o de uma verdadeira ?instituição?, algo como a Organização das Nações Unidas, a Organização dos Estados Americanos etc., dando ao público uma visão distorcida e permitindo que o bando terrorista se apresente ao público como coisa organizada, bem-estruturada, solidificada, baseada em filosofia, doutrina e propósitos profundamente fundamentados, como se fosse uma Instituição de Amparo à Infância ou Associação dos Pais de Família.

"Por outro lado, a notícia do cometimento de uma ação apresenta um conotativo de força, energia, batalha. Parece-nos que é inteligente substituir a palavra ?organização? pela palavra ?bando?, que sugere ?quadrilha de ladrões?, ?banditismo?, dando a idéia de ilegalidade, amoralidade, falta de civilidade. A palavra ?ação? substituída por ?assalto?, ?crime?, ?roubo?, ?chantagem?, ?assassinato? etc., dará ao público a idéia depreciativa do acontecido, despida de conotação de força, energia. batalha, ressaltando o sentido de injustiça, arbitrariedade, desespero, brutalidade, mesquinhez.

"Esse Centro, a partir de 1? de abril próximo, passará a utilizar em seus documentos essas palavras (?) e sugere que o SNI e o MJ, em seus relacionamentos com os diversos órgãos de imprensa, busquem a cooperação desses veículos, no sentido de evitar as palavras ?Organização? e ?Ação?."

Observa Cecília Coimbra: "Da mesma forma que se construíram perigosos ?inimigos da Pátria? nos anos 60 e 70, também hoje, principalmente via meios de comunicação de massa, estão sendo produzidos ?novos inimigos internos do regime?, quais sejam, os segmentos mais pauperizados, todos aqueles que os ?mantenedores da ordem? consideram ?suspeitos? e que devem, portanto, ser evitados e, mesmo, eliminados".

Aos poucos a mídia foi preparando o espírito da população e abrindo o caminho para a intervenção das Forças Armadas, sobretudo em áreas carentes, o que aconteceria em novembro de 1994. Em janeiro desse mesmo ano, os jornais apresentavam como chamada de primeira página "Empresários querem Exército nos morros". Estava em curso a Operação Rio. E com o esquema já em andamento os jornais informavam com títulos como "Exército Comanda a Operação contra o crime", "Nova Fase da Operação vai corrigir erros" e assim sucessivamente.

Nas seções de cartas dos leitores pôde-se também observar como reagia a opinião pública aos fatos. Para se ter uma idéia, quando se anunciava que as Forças Armadas pensavam em se afastar das "operações" contra os "criminosos", em um mesmo dia do início de dezembro daquele ano, O Globo, que sempre apoiou a intervenção no Rio, divulgou 22 cartas favoráveis à continuidade da presença dos militares nos bairros pobres da cidade. A tônica era do tipo "deixem o Exército agir em paz! O Rio precisa disso". "Vamos parar com a hipocrisia, sobretudo desses defensores dos direitos humanos?"Revistar pessoas nunca foi violação de coisa alguma…"

E quem eventualmente se insurgisse era imediatamente considerado "defensor de bandidos". O ex-governador Nilo Batista, inclusive, que defendia ações policiais de respeito aos direitos humanos da população, foi durante muito tempo estigmatizado pela mídia, que não raras vezes o considerava "protetor de bandidos".

A imprensa também ajudou na propagação de algumas "verdades", como a de que as Forças Armadas estão mais bem preparadas que as polícias Civil e Militar para combater o crime, ou a de que o Rio e os grandes centros urbanos vivem uma guerra civil. "E a quem e a que serve isso?", indaga Cecília. "Serve sobretudo para justificar a repressão e as medidas de exceção contra os pobres." O Exército mesmo ? lembra ? considerava que a Operação Rio visava dar combate a uma guerrilha urbana não-ideológica. Ela mostra também como o serviço de informação do Exército participou da Operação Rio.

E é também nesse contexto, analisa a autora, que se dissemina a idéia de que "as torturas são até necessárias". A Operação Rio não fugiu à regra em matéria de práticas de tortura, na base do pau-de-arara, do choque elétrico etc. Documentos oficiais que podem ser encontrados nos anais de um Inquérito Policial Militar indicam que em vários morros da cidade, como o do Borel, por exemplo, houve denúncias de ações arbitrárias. No Complexo do Alemão, André Melo do Nascimento, de 19 anos, passou a usar cadeira de rodas depois de ter sido preso e torturado.

E houve também desaparecimentos. Marcos Antonio Rufino da Cruz, funcionário da Biblioteca Nacional, foi preso pelo Exército e nunca mais foi visto. Cecília Coimbra não exclui a possibilidade de casos semelhantes não-noticiados.

Leitura obrigatória

Pode parecer que a Operação Rio hoje é coisa do passado, mas não. Sua filosofia, alerta Cecília Coimbra, se reflete nas atuais políticas de segurança pública militarizadas que apelam para a lei, a ordem e a repressão. "Não é por acaso que no final da Operação Rio assume a Secretaria de Segurança Pública o general Newton Cerqueira, que serviu no serviço de inteligência do Exército na Bahia, sendo o chefe da operação que culminou com o assassinato do capitão Carlos Lamarca."

Atualmente, quem ocupa o posto é o coronel Josias Quintal, oficial que na época da ditadura prestou serviços no setor de informação do DOI-Codi.

A leitura deste livro possivelmente desagradará a alguns setores, e mesmo a jornalistas, que, atraídos pelo sensacionalismo ou por pautas açodadas, de alguma forma contribuíram para a reprodução dos mitos e estereótipos que só fazem comprometer a imagem do país frente aos organismos internacionais que se ocupam da defesa dos direitos humanos.

Operação Rio ? o mito das classes perigosas, portanto, além de ser um livro de fôlego e extremamente documentado, é um trabalho indispensável, leitura obrigatória para jornalistas em geral e candidatos a cargos eletivos que, nos próximos meses, estarão se ocupando do tema.

Cecília revela-se conhecedora do tema em seus mínimos detalhes. Em sua tese de doutorado pela USP, ela brindou os leitores com um importante trabalho, que também se transformou em livro, intitulado "Guardiãs da ordem ? uma viagem pelas práticas psicológicas no Brasil do milagre".

(*) Editor de Internacional da Tribuna da Imprensa