NOTÍCIAS EM RECESSO
Ivo Lucchesi (*)
É sabido que fim de ano não é um período dos mais gratos à atividade jornalística. As principais áreas, como verdadeiras usinas, geradoras de noticiário, entram em recesso. Nessa época a realidade parece mover-se em ritmo de esgotamento ou paralisia. Tudo fica protelado para o ano entrante. Todavia, a recente semana se revelou pródiga em oferta de temas que, em comum, apresentavam forte densidade dramática. No âmbito nacional, a reunião da executiva da qual sairiam expulsos os parlamentares do PT que se recusaram a um alinhamento com o programa de governo, ao longo de seu primeiro ano. No cenário internacional, sem aviso prévio, a captura de Saddam Hussein. Sem dúvida alguma, os dois temas ocuparam as principais pautas da maioria dos veículos de informação. É precisamente nesse particular que recai a observação a dar tema para o presente artigo.
É cada vez mais flagrante a inibição ? para não caracterizar como incompetência ? da imprensa brasileira em promover abordagens de perfil mais analítico e menos factual, mesmo quando tem a seu dispor convidativos acontecimentos. Os dois fatos mencionados, a despeito das profundas diferenças entre si, estavam irmanados pela tensão histórica, em função da ampla gama de aspectos que os dois enredos propiciavam. Contudo, as coberturas não conseguiram ultrapassar a fronteira da emocionalização que, em nada, supre a necessidade do leitor para o possível exercício da criticidade.
No caso da expulsão, o foco jornalístico se ateve à exposição de declarações de personalidades inteiramente previsíveis a dizerem coisas não menos presumíveis, tanto do lado dos favoráveis à decisão quanto dos outros a ela contrários. Tudo foi tratado como um "novelão" repleto de clichês. Era uma bela oportunidade para exploração das contradições tanto aquelas ditadas pela objetividade histórica quanto aquelas determinadas pela subjetividade que as transcende. Estava em jogo a luta entre as exigências de um processo e as convicções do indivíduo: a "razão-centro" em conflito com a "razão-margem".
Pífio enredo
Por um diferente ângulo, o episódio traduzia o próprio embate no qual está inserido o Brasil, frente às demais nações hegemônicas. Enfim, o país deve continuar atrelando-se a mecanismos que lhe tolhem o princípio da autonomia ou, por outra, deve arriscar manobras, à altura de, com projeto efetivo, impulsionar o investimento em projetos internos, a fim de, a médio prazo, torná-lo competitivo?
Afora questões menores a envolverem intenções (ou projeções) pessoais, a trama da expulsão contém no seu interior o entrave desse dilema. Era, portanto, um instigante gancho para rentáveis matérias e entrevistas menos oportunistas. O modo escolhido pelo formatado jornalismo brasileiro prestou-se uma vez mais a dar visibilidade a interesses obscuros. Enfim, tudo foi usado a serviço da "galeria da fama". Derrotada mesmo saiu a política, no seu significado mais profundo, seja pela pequenez dos "atores", seja pela inoperância, preguiça ou vício da imprensa dominante.
As primeiras imagens da prisão de Saddam Hussein não conseguiram esconder a verdade que, desde o início, a mídia norte-americana camuflou, em parceria com a estratégia do governo-empresa. Ali, numa toca, um ser em farrapos, sem mínimo esboço de reação, era capturado e exposto ao restante do mundo. Tratava-se de uma das mais inverossímeis historietas recusadas até pelo imaginário infantil. Todavia, a mídia brasileira, sempre avessa a questionamentos, nada fez senão reproduzir, desde a primeira hora, o script fornecido pela matriz. Ao longo dos dias subseqüentes, o pífio enredo continuava intacto em sua versão inicial.
Perfil simplório
De qualquer narrativa, mesmo a mais descompromissada com a veracidade das coisas, cobra-se, senão a lógica com os acontecimentos externos, pelo menos a lógica interna. Seja como for, em ambos os casos, a narrativa deve ser orientada pelo princípio da verossimilhança. É a paridade possível e necessária ao grau de correspondência entre o ficcional e o real. Mesmo nos casos nos quais há maior densidade do paradoxo, a exemplo da ficção de Kafka, nela se pode detectar a "lógica do paradoxo". Tal princípio elementar, no entanto, não foi seguido pelo noticiário oficial.
Observando os inaugurais takes, era visível que o "líder" capaz de "destruir o mundo com suas temíveis armas de destruição em massa" (jamais encontradas) se achava em condições psíquicas alteradas. Mais grave ainda, afirmarem que Saddam fora encontrado deitado. Sendo quem era e ciente de, há meses, procurado sequiosamente, Saddam não poderia estar ali deitado, ouvindo pacientemente soldados andarem por sobre sua cabeça. Menos ainda, escondido ficaria num lugar que não lhe oferecesse mínima oportunidade de escape. Claro estava, pois, que ali fora posto por alguém, sedando-o antes. Após uma semana de mentes jornalísticas adormecidas (ou também entorpecidas), eis que a versão da "delação" ganhou presença no noticiário, o que retira da captura toda e qualquer heroicidade da "inteligência" das tropas norte-americanas. A mentira que a tudo deu início teve encerramento condizente: puro ato de traição proveniente de um dos mais próximos auxiliares.
Os dois episódios aqui selecionados apenas configuram o perfil simplório com que a imprensa tem desempenhado seu ofício. É muito pouco para um país cuja população, em sua maioria, está habituada a "compreender" o mundo pelos recortes midiáticos a ela diariamente destinada. A questão, portanto, não se limita a discussões sobre "baixarias" em programas de televisão. É preciso alongar o leque para incluir-se na pauta a redefinição de uma prática jornalística voltada para o real sentido do que seja efetivamente notícia, reportagem, entrevista.
(*) Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro