Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A mídia não ajuda a conhecer o mundo

ORIENTE MÉDIO

Nahum Sirotsky, de Tel-Aviv (*)

Uma das primeiras reportagens que fiz, literalmente no século passado, foi a pedido de Brício de Abreu, então dono e diretor de Dom Casmurro, jornal literário. "Vá falar com o Eloi Pontes sobre a briga dele com Álvaro Lins". A sugestão de nome fora feita por Joel Silveira, inesquecível para aqueles que, como eu, aprenderam com ele. "Foca Zero", é como me chamava. De Eloi sabia que era critico literário de O Globo. De Álvaro Lins, que era o critico do Correio da Manhã. Naqueles tempos havia "nariz de cera". Era mais ou menos assim:


"Acordei cedo, pois tinha hora com Eloi Pontes. Ele mora na Cândido Mendes, na subida para Santa Teresa".


E daí se contava a subida das escadas, se descreviam as casas. A visão do Rio que se ia tendo, a chegada à casa de Eloi, a conversa inicial. E, depois de tudo, uma pergunta: "E a briga com o Álvaro Lins?" E ele respondeu: "É de enciclopédica ignorância". O importante na última linha.

Álvaro Lins acabaria na Academia de Letras. A frase de Eloi foi citada e repetida junto com o meu nome mal soletrado… Mas quem lia Dom Casmurro acabava sabendo quem eram os brigões, o que diziam e se diziam.

O fato pelo fato

O "nariz de cera" era introdução ao tema. Depois, veio a escola americana de respostas a cinco perguntas que consistem na noticia. "Eloi Pontes, de x anos, crítico literário de O Globo, disse ontem que o crítico do Correio da Manhã, Álvaro Lins, é de enciclopédica ignorância".

Joel, Rubem Braga, Samuel Wainer, Fernando Sabino, para citar alguns, eram um prazer ler. Nunca adotaram o lead.

Quem leu as matérias "Os grã-finos de São Paulo", ou "Os imortais da glória", de Joel, ficou com exata impressão de ambiente, gente. Não esqueço reportagem de Fernando Sabino em Portugal. Reproduzindo um verso corrente, mostrou o salazarismo chegando ao fim. Havia um Antonio, bispo do Porto, e Antonio Salazar, o ditador. E Fernando reproduziu:


"Entre o Antonio de lá e o Antonio de cá houve uma disputa. Um é filho da Sé, outro não é".


Lidos, entrava-se na realidade sem estranhar coisa alguma. A "notícia" fez da mídia narradora de fatos. Desumanizou a observação. Como se o importante na vida fosse "quando o homem morde o cachorro". Dá para ler os daqueles tempos e ter uma idéia de como eram.

De olho no que se escreve

"Carro-bomba explodiu diante do quartel central americano em Bagdá matando vinte." Virão outros atentados. A televisão mostra o local. E o que se conta em nada contribui para o mundo se conhecer melhor.

Falta um "nariz de cera" para os novos tempos.

Só nesses últimos anos vim perceber o quanto nós, da mídia, temos falhado na observação de conflitos que parecem se eternizar. Verifiquei que funcionam dois tipos de informação. Um deles, o mais comum, é o factual, os acontecimentos. Outro, que se pode qualificar de propagandístico.

As escolas não preparam para o jornalismo dos nossos dias. Os chamados grandes veículos prosseguem em rotinas que se tornaram incompatíveis no mundo globalizado dos meios de comunicação. É só ver televisão, internet, ler. É mantida a tradição da rotatividade. Chegam os substitutos que pouco conhecem além de técnica. Poucos chegam com o mínimo que é essencial saber para compreender.

Narra-se tudo como se fosse partida de futebol. E torcendo. Por incrível que pareça, e o público com freqüência ignora, o jornalista é um ser humano como qualquer outro. Tem suas preferências. Emoções. Vê e entende com o que sabe e suas simpatias.

Pedras e blocos de cimento

Existem instituições dedicadas a acompanhar o que se escreve,
se mostra, se conta. Camera ? Committee for Accuracy in Middle East Reporting
in América, em <http://www.camera.org/>
e Honest Reporting <http://www.honestreporting.com/>
por exemplo, acompanham a mídia por todos os cantos, e são apenas
duas das entidades que fazem a critica do que se relata. (Este Observatório
é também lido fora do Brasil.) São listas incontáveis
de distorções, acidentais ou propositais.

O preconceito começa na primeira narração e vai se acumulando no passeio da matéria. Quase tudo é editado, cortado, adequado às conveniências e à filosofia do veículo.

Por exemplo: o anti-semitismo está na ordem do dia na Europa, onde Hitler, o líder nazista alemão, conseguiu matar milhões de judeus. A União Européia encomendou estudo cuja conclusão foi: grupos muçulmanos são autores das principais operações contra judeus. E da propaganda.

A UE suspendeu a publicação. O San Francisco Chronicle fez abrangente e impressionante reportagem sobre o fenômeno. A mídia se limitou a informar dos protestos de grupos judeus sobre a escamoteação do resultado da pesquisa, sem entrar na substância do que foi arquivado. E jornal de San Diego, Califórnia, publicou editorial dizendo que Israel é culpada da onda anti-semita. Camera registra tudo sobre a falta de exatidão da mídia.

A mídia fala do aiatolá al-Sistani, que exige eleições diretas no Iraque, enquanto os americanos preferem indiretas. Claro que diretas são mais democráticas. Mas não se enfatiza o suficiente que Sistani é o líder dos muçulmanos da seita xiita, mais de 65%da população do país. As eleições seriam como um golpe de Estado por meios legais, pois os xiitas nunca mais seriam derrotados em eleições. Uma das conseqüências de uma eleição direta poderia ser a implosão do Iraque, que acabaria num país xiita, num sunita e num curdo.

O presidente Assad, da Síria, fez as pazes com a Turquia e inédita visita a Ancara, capital turca, para coordenar uma ação comum contra o movimento separatista curdo, povo que vive dividido entre vários paises da região e cujas terras são ricas em petróleo. Não se entrou neste aspecto.

Há dias, a notícia foi de presença de tropa israelense em Nablus, onde teria morto vários palestinos que se defendiam com pedradas, noticiou uma agência. Mas a AP divulgou fotos mostrando as pedras como blocos de cimento que eram atirados das janelas. Os blocos vindos de cima matam mesmo.

Perigo para os povos e a paz

No conflito israelense-palestino ninguém sai de cara limpa. Um terrorista entra num ônibus e mata dezenas. Os israelenses vão lá, matam ou prendem. Não tem nada de bonito numa guerra.

Não posso deixar de verificar que a mídia tende a ser mais simpática aos palestinos. A conseqüência é que os israelenses assumiram imagem de duros ocupantes, o que tem sua parte de verdade. Mas o terrorismo nada tem de inocente.

Toda essa minha longa conversa é para opinar que os que são enviados à região ? homens e mulheres ? têm grande coragem pessoal. Mas foram treinados para registrar fatos, o que fazem com competência. E, não raro, preconceito. E que o mundo é mais complexo do que atentados e combates. E que o jornalismo exige mais do que técnica. Tornou-se fundamental conhecer em profundidade ? história, economia, tradições, mitos, psicologia, comportamento, religião, geografia ? o que se noticia não informa.

A mídia pode contribuir para um mundo melhor, que se conheça melhor. Tem de se adequar aos incríveis meios de que dispõe para comunicar, expandir conhecimentos e entendimento. Como veículo de preconceitos pode, hoje, em pouco tempo, criar tragédias.

Ela está atrasada em relação à compreensão de seu inédito poder. É técnica, mas precisa mais saber. Tem de se atualizar urgentemente, pois a comunicação instantânea é o maior perigo para a vida dos povos e a paz mundial ? se não aplicada para esclarecer.

(*) Jornalista