Wednesday, 27 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A mídia seqüestra o jornalismo

CASO ABRAVANEL

Muniz Sodré (*)

Não se falou muito sobre a posição da imprensa no episódio do seqüestro de Patrícia Abravanel. Alberto Dines bateu numa das teclas básicas: não pode haver acordo particular de censura à liberdade de informação [veja remissões abaixo]. Por mais execrável que seja todo e qualquer tipo de espetáculo midiático a partir do sofrimento do outro, crime de seqüestro é matéria pública, guardado o imperativo de responsabilidade ética na produção do noticiário.

O que todo o episódio nos traz de instrutivo, entretanto, é a demonstração de como o espetáculo midiático pode acontecer independentemente da consciência manifesta de seus personagens. Silenciada a imprensa, não se consegue silenciar a mídia enquanto forma emergente de vida.

O primeiro indício deve ser pesquisado entre as motivações para a escolha da vítima pelos criminosos. O seqüestro da filha de Silvio Santos oferecia ao mesmo tempo possibilidades de ganho financeiro e de repercussão na mídia.

Em todo o desenrolar dos acontecimentos, é possível rastrear o uso esperto da comunicação, desde o celular deixado na casa da vítima até a convocação final pelo seqüestrador da presença conjunta de mídia (Silvio Santos) e poder estatal (governador Geraldo Alckmin). A lógica midiática dominou falas e ações. É sintomática a frase do pai da vítima ao pai do criminoso, "você tem um grande menino", mesmo admitindo depois: "Tenho certeza de que ele me mataria".

Grande menino? O indivíduo tinha simplesmente acabado de assassinar dois policiais e ferir um terceiro, sem falar do crime de seqüestro, o que pelos princípios da realidade jurídica e moral correntes excluiria qualquer adjetivo elogioso; "grande", porém, porque tinha se comportado como um desses heróis-celerados de filme policial americano classe C, esse gênero de espetáculo que costuma preencher tempo televisivo, repleto de personagens sobre os quais a única certeza que se pode ter é a do homicídio.

Liberdade plena

Como se pode ver, tecendo o fio das ações no interior do episódio, afirma-se o espetáculo midiático. Este se sobrepõe insolitamente à lógica viva das ações e das atitudes na realidade extra-mídia.

Do lado da vítima, a jovem Patrícia Abravanel, o espetáculo foi francamente perturbador. Uma vez libertada, ela mantém um diálogo performático com jornalistas em frente às câmaras de TV, em que denuncia a ausência de Deus junto a seu pai.

Explica-se: Patrícia é neoevangélica, o que implica (1) um discurso midiático, característico do marketing religioso de hoje; (2) um dogmatismo risonho que recusa as diferenças de crença e faz de um tipo específico de culto o melhor dos mundos possíveis, uma espécie de baú "sagrado" da felicidade; (3) uma atmosfera de indiferença ética, onde conta apenas a moralidade explicitada pela doutrina evangélica; (4) uma atração irresistível pelo que Platão chamou de "má retórica", isto é, pela fala enganosa da persuasão a qualquer custo.

Ora, tudo isso é mídia, em sentido lato. Mídia como forma de vida, como um aspecto da produção biopolítica da existência, capaz de gerar inclusive seitas religiosas próprias, em que a idéia de sagrado pode equivaler à do heroísmo folhetinesco. Aí, Cristo e Indiana Jones nunca estiveram tão próximos.

Nesse quadro geral, jornalismo ? no sentido forte do termo ? só pode existir quando exerce liberdade plena, inclusive frente à própria mídia, quer dizer, frente à comunicação puramente corporativa, mercantil e oligárquica. Esse exercício de liberdade permanece na contemporaneidade como eixo ideológico da imprensa, o que nos leva a temer o seqüestro eventual do jornalismo pela mídia. Daí, a razão de Dines: não pode haver censura prévia à informação ? desde que esteja em jogo, claro, uma informação socialmente transitiva e responsável.

    
                         

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