LEITURAS DA FOLHA
Marçal Justen Neto (*)
"É a menor final do Brasileiro". Esta é a manchete de uma das piores reportagens da história do jornalismo esportivo brasileiro, de Rodrigo Bueno, publicada na Folha de S. Paulo em 11/12/01. Além de mal redigida, a matéria contém erros, distorções de fatos, omissões de dados, preconceitos e mentiras. Lamentavelmente, envolvendo o Clube Atlético Paranaense. Compreensivelmente, envolvendo o Clube Atlético Paranaense.
O que o autor da matéria pretendia, ao qualificar a final do Brasileirão como "menor"? Em que sentido utilizava a expressão? Isso tinha de ficar esclarecido desde logo. Ao não expor o critério adotado, o jornalista simplesmente desmereceu os fatos e se valeu de uma pluralidade de critérios, arbitrariamente: público pequeno nos estádios, desinteresse dos telespectadores, elencos modestos, futebol discutível, técnicos sem títulos, campeão inédito e finalistas que não fundaram o Clube dos Treze.
Ocorre que, sob qualquer critério possível, o texto é errado. Essa não é a menor final dos campeonatos brasileiros. Basta analisar os critérios utilizados pelo próprio jornalista.
O público nos estádios
O critério que parece ter sido eleito como principal é o público nos estádios. O jornalista adota um critério absurdo, que é o de somar os públicos dos dois jogos das finais. Supondo-se uma final em duas partidas, imagina-se que estarão presentes pouco mais de 60 mil pessoas. E isso porque a capacidade dos dois estádios é de aproximadamente 30 mil lugares. Mas nem todos os campeonatos brasileiros foram decididos em dois jogos (de ida e volta). Houve casos em que a final ocorreu em somente um jogo e outros em que não houve sequer uma decisão entre dois times, mas um triangular final. Portanto, a matéria errou por adotar um critério impossível de comparar todas as situações.
Mas errou também pura e simplesmente sobre os fatos. O menor público efetivamente verificado até agora aconteceu na final do Campeonato Brasileiro de 1991. Pouco mais de 12 mil pessoas assistiram ao jogo decisivo (Bragantino x São Paulo). Caso a quantidade de público fosse critério para classificar finais de campeonatos em grandes ou pequenas, certamente o Brasileiro de 91 levaria o título de a menor final.
Considerando-se finais em dois jogos, a questão não ficaria muito menor. Atualmente, esta marca pertence ao Campeonato Brasileiro de 1994. Somando-se os dois jogos das finais, 71.626 pessoas estiveram no Pacaembu, em que foram jogadas as duas partidas. Ou seja, apenas 11.626 a mais do que a "previsão" do autor da matéria. Naquele ano, a final foi disputada por Corinthians e Palmeiras, os times que contam com as maiores torcidas do estado de São Paulo. Assim, aplicando o critério do jornalista até pode ser que a final deste ano seja a "menor" de todos os tempos. Mas fica uma pergunta: o jornalista considera que, até então, a menor final do Brasil havia sido Corinthians e Palmeiras, em 94? E por que a reportagem não se referiu a este fato?
A transformação da opinião em fato
O jornalista, porque especializado, sabia que o número de espectadores é uma questão variável, que não pode fundar algum juízo mais sério. Suponha-se que o segundo jogo fosse realizado no Morumbi. Poderia levar 50 mil pessoas, o que tornaria a final de 94 a menor de todas mesmo. Lembre-se de que, na data da reportagem, sequer estava decidido o local do segundo jogo. Por isso, o autor teve de reconhecer que seu juízo pessoal se fundava em outros critérios. Como disse, "… a final não é pequena pelo público, cujo desinteresse em quase todo o país assusta a Globo, emissora que exibe a competição e que priorizou jogos de Corinthians e Flamengo aos domingos".
Ora, em primeiro lugar, caberia indagar se o jornalista obteve informações diretamente com a Globo, acerca do assunto. Não fica claro se o "medo" da Globo era um fato ou era uma simples cogitação pessoal do jornalista. Esse é um dos mais graves defeitos do jornalismo: transformar um juízo pessoal em conduta real de terceiro. Esse trecho, "cujo desinteresse em quase todo o país assusta a Globo", é um dos exemplos de como não se faz jornalismo. Para seguir as regras de sua profissão, deveria fazer-se uma ressalva de que essa era uma avaliação pessoal do colunista.
No segundo parágrafo, o autor classifica Atlético-PR e São Caetano como "modestos". Segundo o Dicionário Houaiss, há 8 definições para o termo "modesto". Em nenhuma delas é possível encaixar Atlético-PR e São Caetano. Os clubes não são "despretensiosos, desprovidos de vaidade, pobres, parcos ou de baixa posição em seu meio profissional".
Portanto, ou o jornalista desconhecia o sentido da palavra ou a aplicou incorretamente, impensadamente, seguindo um preconceito pessoal próprio. Ou seja, qualificou os times como "modestos" porque essa era sua opinião pessoal. Mas, nesse último caso, teria de formular uma ressalva, dizendo que isso era seu entendimento pessoal.
A questão dos elencos no presente
E o jornalista volta a utilizar a mesma expressão, ao dizer que "os elencos dos dois times são modestos". Ora, a utilização deste termo novamente só pode nos levar a crer que o autor desconhece o significado de modesto.
Essa pode ser pura e simplesmente a opinião do jornalista. Mas não se faz jornalismo apenas com opiniões pessoais. Tem de haver dados objetivos e concretos. Bom, qual o critério para classificar os jogadores desta maneira? O argumento de que apenas um dos jogadores dos dois times atuou pela Seleção Brasileira nas Eliminatórias é muito fraco. Qual o critério para se tomar apenas os 61 jogadores que defenderam a Seleção nas Eliminatórias como padrão de qualidade?
É importante lembrar que apenas 5 jogos das Eliminatórias foram disputados durante o Campeonato Brasileiro. Por que não citar então todos os jogadores que já tiveram passagens pela Seleção Brasileira? Assim, teríamos ainda Souza, Adriano, Silvio Luiz e o tetracampeão mundial Müller como outros representantes.
De mais a mais, os critérios de convocação podem ser problemáticos. O Sport Club do Recife ? último colocado no Campeonato ? teve convocado Leomar para participar das Eliminatórias.
A questão dos elencos no passado
O critério da participação na Seleção envolve outra dificuldade. É que, no passado, numerosos outros times foram campeões sem terem jogadores de Seleção. Ou seja, como seria possível afirmar que essa seria a menor final se outras, no passado, tiveram perfil idêntico?
Outros times chegaram à final e foram campeões, em situação idêntica ou pior do que a presente. Por isso, a matéria busca ainda dirimir possíveis dúvidas citando outros finalistas que poderiam ser contestados. Para isso, alega que o Guarani de 78 reunia grandes promessas e o Coritiba de 85 tinha jogadores "carismáticos" como Lela e Rafael. Ora, este é, disparado, o argumento mais fraco de toda a reportagem. Lela e Rafael nunca foram carismáticos o suficiente a tal ponto de, sozinhos, atraírem atenção do país para o jogo e o salvar de ser uma final "pequena".
Quantos jogadores de Bangu e Coritiba, final de 1985, haviam participado da Seleção Brasileira? Diante da impossibilidade de responder a essa pergunta, o jornalista afirmou que isso era irrelevante, porque alguns jogadores eram "carismáticos". Portanto, o critério de avaliação da final passou a ser o "carisma" dos jogadores. Sem dúvida, o texto é muito inovador, nessa passagem: eis que nunca, em tempo algum, a imprensa esportiva se valeu desse critério para classificar as finais de algum campeonato.
Ademais, o jornalista tem a opinião de que Lela era um jogador carismático, a qual dificilmente será compartilhada por mais alguém. Talvez nem mesmo os torcedores do Coritiba possam concordar com isso, ainda que não discordem das qualidades pessoais do jogador.
Também, quem pode dizer o que é um "jogador carismático"?
A ignorância acerca dos fatos do futebol
A matéria formula uma ponderação que não merecerá adesão de qualquer jornalista brasileiro. Sustenta que "Atlético-PR e São Caetano triunfaram no torneio deste ano com um futebol no mínimo discutível". Ora, o autor, tão aficionado aos dados estatísticos, parece ter esquecido completamente deles. O São Caetano fez 59 pontos na fase inicial e o Atlético, 51. Foram os times de melhores campanhas. Logo, não são finalistas por motivos discutíveis. Pelo contrário. Desde 1991, o campeonato não era decidido pelos dois melhores times da competição.
Os mais respeitados especialistas do país no assunto teceram elogios ao futebol praticado por São Caetano e Atlético-PR. Confiram-se as recentes colunas de Armando Nogueira, Juca Kfouri, Tostão e José Geraldo Couto, para citar apenas quatro.
Por que o futebol do São Caetano é discutível? Ganhou dos maiores times brasileiros, fora de seus domínios, inclusive. O Atlético Paranaense teve o melhor ataque da competição. Quais são os critérios de que se vale o jornalista para discutir o futebol das duas equipes? Discorda de seus esquemas táticos? Questiona a qualidade de seus jogadores?
Não se contraponha que se trata de uma mera construção verbal. Suponha-se a seguinte afirmativa: o repórter Rodrigo Bueno desperta a atenção do público valendo-se de expedientes no mínimo discutíveis. Será satisfatória essa mera construção verbal?
A distorção dos fatos
O único fato alegado contra um dos times foi a pretensa violência do Atlético. A matéria alega que o Atlético "pára o adversário quase sempre com jogadas duras ? Kaká e Adriano, do São Paulo, voltaram de Curitiba de muletas (sic) (…)".
Novamente, onde estão os fatos? A expressão "quase sempre" não explica nada. Qual é esta freqüência? O que significa "quase" sempre? Supõe-se que seja na maioria das jogadas. Como isso obviamente não é verdade, já que é impossível que um time faça mais faltas do que desarmes, a matéria novamente ignora dados para se basear na opinião do autor.
Para suportar sua opinião, cita apenas um jogo, contra o São Paulo. Revela o fato de que Kaká e Adriano foram obrigados a usar muletas, depois do jogo. Mais uma vez, a informação é enganosa. Kaká absolveu o volante Cocito, do Atléeacute;tico-PR, que fez a falta que acabou resultando em sua contusão. Participando do programa Terceiro Tempo, da Rede Record (em 10 de dezembro), o meia são-paulino reconheceu que levou azar no lance e que Cocito não foi violento. Contou ainda que seu choro foi em função da eliminação do São Paulo, e não por culpa da contusão.
O autor diz que os jogadores voltaram de Curitiba de muletas, mas isso não revela a gravidade da contusão. Faltou citar que os exames médicos realizados em Kaká comprovaram que a lesão sofrida pelo jogador não foi grave. Vários jogadores do Atlético (como Gustavo, Cocito e Kléber) também saíram contundidos da partida.
Depois, o Atlético venceu o Fluminense sem qualquer recurso à violência. O Fluminense, aliás, ficou mais bem classificado do que o São Paulo nos pontos corridos.
A ofensa pessoal inadmissível
Na sua tentativa de justificar racionalmente seus preconceitos, o jornalista ultrapassa os limites do razoável e agride pessoalmente os jogadores. Diz que "o time rubro-paranaense (sic) conta com refugos (sic), como o zagueiro Nem".
Em primeiro lugar, há demonstração de ignorância do jornalista. O Atlético não é conhecido como rubro-paranaense. Essa é uma expressão sem sentido, nem é utilizada na prática. Equivale a denominar ao Flamengo de equipe "rubro-carioca". Pode indicar que o jornalista sequer conhece as cores do Atlético Paranaense, pretendendo discutir temas sem suficiente conhecimento de causa.
Depois, a expressão "refugo" é altamente pejorativa, dotada de profundo preconceito. Não contém apenas uma carga descritiva, mas um cunho desqualificante. Ao aplicar aos jogadores do Atlético Paranaense a pecha de "refugo", o jornalista produziu uma ofensa pessoal, incompatível com a natureza de sua atividade. Mais ainda, comprometeu os princípios fundamentais professados pelo jornal em que trabalha. Nesse ponto, o preconceito do jornalista merece profundo repúdio.
É fato que Nem foi emprestado pelo São Paulo ao Atlético. O São Caetano também conta com vários jogadores dispensados de outras equipes. Mas se esse é o critério de julgamento, então teria de ser aplicado a outras finais. Lembre-se, por exemplo, que o Fluminense de 1994 contava com Assis e Washington, que tinham sido dispensados por São Paulo e Internacional. Aliás, qual dos times campeões brasileiros não contou com jogadores dispensados por outras equipes?
A situação dos técnicos
A matéria afirma que os técnicos dos times têm currículo humilde. Isso demonstra profundo desconhecimento sobre os fatos, uma vez mais. Jair Picerni foi campeão brasileiro de 1987 e vice-campeão brasileiro de 2000. Além disso, conquistou medalha de prata nas Olimpíadas de Los Angeles. Geninho, este sim, tem poucos títulos. Apesar disso, foi campeão da Série B de 2000, o que não é uma conquista tão insignificante assim.
Mas se esse é o critério para julgar a final como menor, como considerar outras finais anteriores? Muitos treinadores eram desconhecidos, quando chegaram ao título nacional. A relação é imensa e podia começar pelo próprio Oswaldo de Oliveira. Rapidamente, pode-se mencionar Paraguaio, Hilton Chaves, Barbatana, Duque, Carlos Alberto Silva, Formiga, Edu, Moisés, Gainete, Pepe, Abel Braga, Nelsinho Baptista e Gil. Muitos desses conquistaram títulos importantes posteriormente, mas tinham currículos menos importantes do que Jair Picerni e Geninho à época das finais.
A questão do Clube dos Treze
A matéria afirma que o Campeonato Brasileiro será decidido por clubes que não fundaram o Clube dos Treze, "entidade que integra os principais times do país (…)". O argumento supostamente serve para sustentar a opinião de que os clubes são pequenos, já que não estão entre os principais times do país. No entanto, há novamente uma escolha de critérios sem fundamento. Qual o motivo de se ter omitido o fato de o Atlético Paranaense fazer parte do Clube dos Treze? Ao ser admitido pela entidade, passou a fazer parte do grupo dos principais times do país, assim como os demais.
O interesse dos torcedores
Um erro de avaliação mais que evidente. Querer afirmar que esta é a menor final do Campeonato Brasileiro de toda a história pelo fato de que não haverá interesse do público nos dois jogos finais é um despropósito. Este simples dado leva a crer que não há um interesse dos torcedores pelo jogo (ou que haja "pouco apelo"), quando a realidade é bem outra. Os ingressos para o primeiro jogo, na Arena da Baixada, começaram a ser vendidos às 9 da manhã de quinta-feira (13/12). A partir das 13h da quarta-feira (portanto, 20 horas antes do início das vendas) os torcedores começaram a formar fila em frente às bilheterias. Por volta da meia-noite, a Polícia Militar estimava que aproximadamente 10 mil pessoas estivessem na fila. Como cada torcedor só pôde comprar três ingressos, muita gente ficará de fora. Certamente não por falta de interesse, mas porque o estádio não permite mais pessoas. Apenas para ressaltar, a arquibancada custa R$ 15, valor alto para o Brasil. Mesmo assim, a torcida não perdeu o interesse.
Conclusão
Supõe-se que uma instituição como a Folha tenha compromisso com a verdade e com a imparcialidade. Mais ainda, a Folha sempre se preocupou com a diversidade dos interesses, especialmente daqueles das minorias. Para a Folha, ser "menor" nunca foi demérito. Nunca a Folha assumiu a autoria da qualificação de alguém ou de alguma instituição como "menor".
Talvez a Folha tenha perdido o bonde da história do futebol brasileiro. Pode pensar que o futuro do futebol está nos grandes times de São Paulo e do Rio de Janeiro. Pode incorrer nos mesmos equívocos de seu repórter ? o qual já cometeu os mesmos deslizes quando atuava na cobertura do futebol internacional (e teve de pedir desculpas aos leitores por "quebrar a cara" e passar por "quase ignorante" ? as expressões são textuais, dele mesmo). O futuro e os fatos falarão por si próprios. É muito possível que a "menor de todas as finais" seja não apenas uma das melhores, mas sinalize o início de novos tempos, em que o futebol brasileiro voltará a ser "o" maior.
(*) Torcedor do Clube Atlético Paranaense; e-mail: <justen@furacao.com>