HA?ARETZ
No dia 12 de setembro, o diário israelense Ha?aretz recebeu da Escola de Jornalismo da Universidade do Missouri medalha de honra "em reconhecimento à longa tradição de cobertura independente e equilibrada sob as mais difíceis condições". Trechos do discurso do publisher Amos Schocken foram publicados pelo jornal.
Schocken contou ao público que Ha?aretz é o veículo mais antigo de Israel, criado na Palestina em 1919, quando o país estava sob comando inglês, por sionistas que vieram da Rússia. Em dezembro de 1935, o avô de Amos, Salman Schocken, um comerciante que fugira da Alemanha um ano antes, comprou o jornal. Na Palestina, este sionista interessado em arte, história e filosofia se aproximou do grupo Brit Shalom, que apoiava a coexistência pacífica entre judeus e árabes, além de reconhecer as aspirações nacionais das duas comunidades.
Com a aquisição do Ha?aretz, o filho de Salman, Gustav Schocken, então com 24 anos, assumiu o negócio. Segundo Amos, seu pai logo descobriu que estava mais interessado nos aspectos editoriais do que na contabilidade do jornal, e nomeou-se editor-chefe e publisher em 1939, cargos que ocupou por 51 anos. Foi Gustav o responsável pela modernização do jornal, ao criar uma página editorial influente e incentivar jornalistas a se especializar em diferentes áreas. Embora o diário nunca tenha sido o de maior circulação, ele se tornou conhecido e respeitado.
"O Ha?aretz do meu pai era um jornal com opiniões, com um ponto de vista", contou Amos. O diário tinha uma idéia clara do que deveria ser o Estado de Israel, criado em 1948: judeu e democrático. Ou seja, deveria tentar manter uma maioria de judeus na população, mas garantir direitos iguais aos não-judeus.
A defesa destas idéias muitas vezes levou o jornal a entrar em conflito com o governo e com o público. Isto aconteceu, exemplificou Amos, nos primeiros 20 anos de existência de Israel, quando a economia era controlada pelo governo e o diário defendia o afastamento do Estado deste setor. Tal posição desagradou grandes anunciantes do jornal (indústrias favorecidas por esta política). O Ha?aretz também sofreu muitas críticas de leitores e teve assinaturas canceladas quando foi contra a guerra do Líbano comandada por Ariel Sharon (então ministro da Defesa), em 1982, e quando cobriu o uso excessivo de força pelo Exército israelense contra os palestinos na primeira Intifada, no fim da década de 80.
Desde 1967 o jornal defende que Israel adote uma política de devolução dos territórios ocupados aos árabes em troca da paz. Manter israelenses nestas terras, disse Amos, não só impede um acordo como põe em risco o caráter de estado judeu de Israel, ao acrescentar à população milhões de árabes.
Tal questão divide a sociedade há mais de 30 anos, mas o acordo de Oslo fez com que muitos mudassem de idéia e adotassem a mesma posição que Ha?aretz, o que refletiu positivamente na circulação. A década de 90 foi a melhor época vivida pelo jornal, que vende 70 mil cópias por dia e 100 mil nos fins de semana, pouco menos que seus principais rivais. Amos revelou que naquela década três acontecimentos tiveram um efeito importante sobre o diário: o primeiro foi terem "se livrado" de sindicatos trabalhistas: "A administração conseguiu toda a liberdade para tocar o negócio e os editores não enfrentaram mais pressões do sindicato para contratar ou despedir."
O segundo acontecimento foi a introdução de tecnologia, que reduziu muito o custo da produção do jornal, e o terceiro, a morte de Gustav em 1990, aos 78 anos de idade. Um novo editor-chefe, Hanoch Marmari, assumiu seu lugar. Para Amos, a entrada de um editor jovem (com 42 anos na época), talvez mais familiarizado com a complexa sociedade israelense e interessado em diferentes assuntos, refletiu no jornal, atraindo um público mais amplo. O caderno de negócios aumentou, assim como o de cultura e de esportes. Em 10 anos, o número de páginas do jornal e de repórteres triplicou, e a tiragem aumentou em mais de 50%. Numa visita ao Washington Post há alguns anos ? com quem o jornal tem um acordo para imprimir o International Herald Tribune, que por sua vez distribui a versão inglesa do Ha?aretz ? Amos relatou a descoberta de que tem 40% do total de funcionários do Post para um jornal com apenas 10% de sua circulação.
Os palestinos no jornal
Em maio de 2000, o International Press Institute comemorou 50 anos de atividade premiando 50 profissionais por seus trabalhos na área da liberdade de imprensa nos últimos 50 anos. Um dos vencedores foi a repórter do Ha?aretz Amira Hass, que passou uma década cobrindo as comunidades palestinas na Faixa de Gaza e na Cisjordânia. O comitê do IPI declarou que o jornalismo de Amira contribuiu de forma direta e significativa para o processo de paz entre israelenses e palestinos. No breve discurso de agradecimento, Amira disse à platéia, em Boston: "Vocês pensam que há um processo de paz ocorrendo no Oriente Médio. Deixe-me dizer que não há. Em relação aos palestinos, desde que o processo de paz começou, suas vidas ficaram ainda mais desgraçadas. As pessoas não vêem benefício nisso, e tudo vai acabar explodindo". Ela fazia esse alerta há um bom tempo no jornal, disse Amos. Cinco meses depois, realmente explodiu.
Após o fracasso do acordo de paz em Camp David vieram os homens-bomba e a dura reação militar de Israel. Os turistas desaparecem, muitos perderam o emprego e os investimentos estrangeiros pararam de entrar no país. A economia encolheu e perdeu a estabilidade. O jornal cobriu intensivamente o terrorismo, mas não parou de relatar as ações militares do governo nem deixou de defender a retirada de territórios palestinos. Alguns leitores, disse Amos, o acusam de ser anti-sionista e anti-Israel, de relatar o sofrimento dos palestinos e ignorar os israelenses e de apoiar os que se recusam a servir o Exército. A eles, Amos responde: nós cobrimos todas estas histórias porque isto é Israel.
O debate não ocorre somente com os leitores, mas dentro do próprio conselho do jornal. "É um dilema constante: como editar um jornal quando seus leitores estão com os nervos à flor da pele. Até que ponto levar isso em conta nas decisões editoriais." O editor Marmari sustenta que, embora esteja certo de sua posição, o diário não pode perder a importância que tem para os leitores nem o diálogo que mantém com eles. Na visão de Amos, um jornal tem uma missão, e esta não é necessariamente escrever de acordo com os desejos, medos ou crenças dos seus leitores. "Nossa missão é dizer a verdade mais próxima daquilo que pode ser verificado, e dizer toda a verdade até onde pudemos descobrir. As condições sob as quais milhões de palestinos vivem perto de nós, israelenses, é algo que precisamos saber. É uma parte vital da nossa realidade", defende o publisher.
Leituras indesejadas
Muitas pessoas interessadas no Oriente Médio freqüentemente visitam o sítio do Ha?aretz; durante a Intifada, este número aumentou bastante. Por estar disponível em inglês e por ser considerado uma fonte confiável, o jornal é muito citado pela mídia estrangeira. Embora isto seja motivo de orgulho para a equipe, Amos revelou que muitas vezes as matérias sobre o sofrimento dos palestinos civis são republicadas sem contemplar o contexto maior da cobertura sobre o conflito. Ele se pergunta se isso deveria afetar o trabalho do diário, especialmente quando um leitor cancela sua assinatura acusando-os de sujar a imagem do país no mundo. Em sua opinião, a única coisa que podem fazer, já que não podem controlar como o material será recebido, é agir como um jornal israelense escrevendo para leitores israelenses de maneira profissional, sem levar em conta as leituras em outros lugares. Do contrário, isto destruiria sua missão como um jornal israelense. "Se agimos sempre desta maneira? Espero que sim, mas não estou certo; não somos completamente imunes à resposta que recebemos do mundo exterior."