URNA ELETRÔNICA EM XEQUE
Marco Aurélio Dutra Aydos (*)
I.
"A Tirania da Comunicação"
Ignacio Ramonet, diretor do Le Monde Diplomatique, publicou em livro algumas reflexões sobre a comunicação e o jornalismo em tempos atuais (A Tirania da Comunicação. 2a ed. trad. de Lucia Orth, Petrópolis: Vozes, 2001. 141 pp.), onde discorre sobre a diferença de local da tirania e da censura na comunicação de hoje e de ontem. Segundo o autor, o jornalismo atual enfrenta uma crise de credibilidade, acentuada pela multiplicação de "enganações" e de falsas notícias. Entre as causas disso, aponta que o próprio conceito de jornalismo entrou em crise, com a imitação do estilo televisivo de notícias. Até no plano administrativo, a mídia deixou de ser dirigida por jornalistas, e seus dirigentes "vêm doravante do universo empresarial e não mais do mundo jornalístico [e são] menos sensíveis à veracidade da informação" (p. 15). Há, ainda, uma mudança de "tempo" na transmissão da informação, que hoje deve ter a utopia do instantâneo, do "ao vivo" e no local, como se apenas o visível fosse "real". Essa adoração televisiva pela imagem "real" imprimiu seu selo ao jornalismo escrito, que deve assumir um discurso igualmente ultra-rápido, estar em todos os lugares, tocar a sensibilidade como se estivesse "mostrando" o fato, e não reportando-o. O jornalismo escrito não pode perder espaço para a televisão e por isso, obviamente, "não tem tempo de filtrar, de verificar, de comparar, porque, se perder muito tempo para fazê-lo, outros colegas tratarão do assunto antes dele. E, com certeza, sua hierarquia não o perdoará" (p. 74). Sem tempo de investigar, contextualizar o fato, refletir, forçosamente os jornalistas são menos responsáveis e "chega-se a este paradoxo: quanto mais se comunica, menos se informa, portanto mais se desinforma" (p. 102). A imitação da televisão pelo jornalismo transforma ainda o sentido de seu existir, que passa a valorizar mais o distrair e menos o informar, esclarecer, dizer a verdade. Multiplicam-se os canais de "notícias" em 24 horas, mas a natureza desse universo de noticiário é de distração e não de informação. A superabundância de notícias, "diretamente e em tempo real", dá à notícia a emoção do fato vivido, mas confunde "informação com atualidade, jornalismo com testemunho"" (p. 111). Por não ser preciso condensar em poucos minutos a "atualidade" do dia, todas as notícias, inclusive as mais triviais e as de puro entretenimento, competem em tempo e espaço e adquirem o mesmo valor. E é aqui que se modifica a "censura" atual, que, "em oposição à censura autocrática, não se funda mais na supressão ou no corte, na amputação ou na proibição de dados, mas na acumulação, na saturação, no excesso e na superabundância de informações" (p. 29). A superabundância de matéria-prima limita a reflexão do jornalista, pois as notícias já lhe vêm prontas, bastando empacotá-las em emoção e entrar no ar, como matéria bruta na esteira de produção de uma fábrica; e limita a reflexão do telespectador ou leitor, que já recebe o fato "atualizado", pronto e pré-conceptualizado por outrem.
Aqui entra a sutil manipulação do processo editorial de atualidades, porque a atualização é recebida pelo leitor como algo que está ocorrendo agora, mas que já passou e terminou, e assim adquire a imutabilidade do passado. A censura moderna é uma "edição" da verdade, que se apresenta como atualidade para distração do telespectador, que a recebe com déficit de autonomia, como sujeito passivo do fato acabado, selecionado pelo critério de edição do editor e empacotado em linguagem hábil a convencer-lhe, que pode variar desde o humor até o quase trágico. Dizer as notícias cada vez mais aparenta-se ao ato de "representar" e demanda talento de atores e atrizes.
Resistindo contra a ficcionalização da realidade, para consumo rápido, há os que apostam na capacidade do jornalismo de informar, algo qualitativamente distinto de atualizar-se. "Informar-se – prossegue Ramonet – continua sendo uma atividade produtiva, impossível de realizar sem esforço, e que exige uma verdadeira mobilização intelectual. (…) A informação não é um dos aspectos da distração moderna, nem constitui um dos planetas da galáxia do divertimento; é uma disciplina cívica cujo objetivo é formar cidadãos" (p. 138).
Rejeitar a diversão dos shows de atualidades é o preço que deverá pagar o jornalismo que deseje encontrar o público que, embora diminuto, ainda existe, e não aceita ser "sujeito passivo da verdade" pré-pronta e embalada por interesses escusos, para os quais a verdade é um entrave, atrapalha, incomoda. Até mesmo porque há quem ache que informar-se e progredir na verdade é mais prazeroso do que distrair-se em frente ao balcão de atualidades.
II.
Um caso interessante e que ilustra o jornalismo de atualidades, e sobre como a verdade é selecionada criteriosamente para finalidades políticas explícitas (para não falar de todo o jornalismo de "pânico" que começa a surgir com os fatos estatísticos do "risco Brasil" e outros abusos do gênero, que só tende a piorar até outubro/2002) é representado pela cobertura jornalística em torno à mudança radical no processo eleitoral brasileiro, desde a adoção da apuração integralmente eletrônica.
A verdade "acima de qualquer suspeita" e o conceito editorial de que a urna eletrônica é um "progresso" (conceito que vem embutido na verdade do fato, embora seja opinião, porque progresso é conceito e não fato) vêm sendo urdidos pela mídia desde a cobertura da última eleição presidencial norte-americana, no tom de ridículo que consagrou nosso telejornalismo ao "atraso norte-americano" que permitiu adiar a divulgação do nome do presidente eleito, porque teimosos e atrasados eleitores de um determinado estado quiseram contar e recontar os votos.
Desde então, a edição da verdade funciona pela síntese ideal entre um enorme silêncio e a oportuna "revelação", como num espetáculo teatral. Comecemos pela revelação, e em seguida falemos do silêncio.
A Rede Globo divulgou, no Jornal Nacional de 29 de maio de 2002, resultado de laudo pericial elaborado por técnicos da UNICAMP, apresentado pelo Ministro Nelson Jobim, do Tribunal Superior Eleitoral, sobre a segurança da urna eletrônica. O laudo, segundo palavras do Ministro Presidente da Justiça Eleitoral, "confirmou o que já se sabia: que a urna eletrônica é segura".
Eis a revelação. Agora, vejamos o objeto do longo silêncio. O que a Globo recusa-se a divulgar é a preocupação em torno à segurança da urna eletrônica, a "causa" da notícia de 29 de maio, sem a qual essa notícia ou atualidade aparece como um evento gratuito, equiparado a uma revelação da Providência. O que não surpreende. A verdade jornalística é uma edição da verdade real, selecionada sob a desculpa quase irrecusável de que a eleição de prioridades decorre da falta de "tempo" para eventos secundários. É verdade que aos poucos segundos da notícia sobre o "laudo da UNICAMP" pode suceder o dobro de tempo de "notícias" sobre quem irá para o paredão do Big Brother Brasil, fato essencial e que se tornou objeto do telejornal diário que condensa os acontecimentos mais importantes do dia. Falta de tempo é argumento que abre um enorme espaço para a discricionaridade do editor, e pode ser traduzido pela fórmula do absoluto voluntarismo. Onde falta tempo para a verdade inteira, cada um publica o que bem quer, e edita a verdade como lhe convém.
Aos que temos mais tempo (ou impaciência para os telejornais) valeria a pena suprir as falhas de edição e parar para dar tempo à notícia, submetê-la a análise e completá-la, para que faça sentido. Informação que faz sentido diz a que veio, o seu porquê. Quem acha que a informação sobre o resultado do laudo anunciado pelo Ministro deva fazer sentido divulgaria que no mesmo dia 29 de maio a confiabilidade do voto eletrônico foi tema de seminário no Centro Cultural da Câmara, em Brasília. Fato que, por ser a causa da notícia divulgada pela Globo, era de publicação obrigatória no contexto da notícia, e afinal teria tomado apenas mais alguns segundos do telejornal. O evento reuniu "engenheiros eletrônicos, especialistas em informática, jornalistas e um integrante do Ministério Público Federal, além de personalidades que questionam a segurança das eleições informatizadas brasileiras".
Pelo Ministério Público Federal, compareceu o Procurador da República Celso Antônio Três, que publicou artigo definitivo sobre "A Soberania do Povo na Fiscalização do Exercício de sua Soberania", questionando a apuração eletrônica, em Boletim da Associação Nacional dos Procuradores da República, ano IV, número 39, julho de 2001, pp. 3/4 (disponível no endereço www.anpr.org.br).
Pouco noticiadas, ou quase escondidas do público, têm sido quaisquer manifestações sobre a "confiabilidade da urna eletrônica". Como temos tempo, valeria a pena suprir a ausência de notícias sobre o tema.
Os focos da controvérsia são sérios e dignos de serem ouvidos. O engenheiro Amílcar Brunazo Filho produziu e fez circular, em edição de autor, opúsculo contendo artigo que apresentara em 25 de outubro de 2000, em Simpósio de Segurança em Informática. O autor propõe que "o voto eletrônico seja tratado como um "sistema de alto risco de fraude"", após examinar os aspectos técnicos da urna eletrônica adotada no Brasil. (Brunazo Filho, Amílcar. A Segurança do Voto na Urna Eletrônica Brasileira. Em SIMPÓSIO DE SEGURANÇA EM INFORMÁTICA, 1999. São José dos Campos. Anais… São José dos Campos: ITA, 1999. Pp. 19-28).
Há um ano atrás, artigo de Marina Amaral, intitulado "A Vez das Urnas – Fraudes no painel do Senado evidenciam fragilidade das urnas eletrônicas" (em Revista Caros Amigos. Ano V, número 50, maio de 2001. p. 15), aproveitando a analogia com o escândalo da fraude do painel de votação "eletrônico" do Senado Federal, trouxe para o debate cívico em torno ao processo eleitoral informações preciosas e impressionantes. Reporta-se a articulista a uma antiga impugnação, pelo PDT, ao sistema eletrônico de votação, que jamais foi votada e encarada com seriedade pelo Poder Judiciário, vindo, como dizem, a "perder o objeto" por decurso de prazo ou algo que o valha. O argumento do PDT era simples: a apuração eletrônica não é fiscalizável pelos concorrentes. O sistema consagra a impossibilidade de fiscalização do processo de votação e "a Abin (Agência Brasileira de Inteligência), chefiada pelo general Alberto Cardoso, órgão vinculado à Presidência da República, é responsável por um dos softwares mais importantes da urna: a biblioteca de criptografia, que tem como função cifrar os dados gravados nos boletins das urnas antes da apuração. Como explica um dos maiores especialistas brasileiros em programas de segurança para preservar a integridade e o sigilo de dados, o professor Pedro Rezende, da Faculdade de Ciências da Computação da Universidade de Brasília, esse programa da Abin, além de inadequado, traz mais riscos que segurança para a votação: "Até onde se sabe, essa biblioteca criptográfica é acionada quando se liga a urna para conferir a autenticidade do programa que conta votos e, ao final, faz a cifragem dos votos totalizados na urna, permanecendo ativa durante todo o processo. Isso permite que a biblioteca faça coisas para a qual não foi especificada, se houver portas ocultas ou falhas no sistema operacional que o autor da biblioteca saiba explorar. Ela pode interceptar dados enviados do teclado para o programa de votação, via sistema operacional, e deste para a tela, interferindo no resultado da votação. Sou capaz de rabiscar linhas de código que, se inseridas na biblioteca, a fariam funcionar como um cavalo de Tróia, invertendo um em cada 25 votos em um determinado candidato, por exemplo, sem que o eleitor percebesse o embuste", diz.".
E há outro argumento, ainda, que torna mais impressionante o item "segurança" da apuração eletrônica:
"Os códigos fonte do sistema operacional – das empresas Procomp e Microbase – estariam protegidos por "direito autoral", ou seja, ninguém pode conhecer de que forma foram programados. Como compara Rezende: "Você compraria um alarme para sua casa de um fornecedor que tivesse você como único cliente, que fosse o único a poder acessar esse sistema e pudesse ter interesse em roubos na sua casa?" (em Revista Caros Amigos. Ano V, número 50, maio de 2001. p. 15).
Nada disso pode aparecer na Globo. Mas o telejornal de provável maior audiência nacional não está nem por isso "desatualizado". Alguns dias após a revelação do laudo, abriu espaço para importante sessão do Congresso em que o Ministro Jobim e o chefe da Agência de Inteligência deviam explicar-se sobre a segurança da apuração eletrônica. Novamente, por efeito de edição, preferiu-se dar ênfase a um evento lateral, documentando questionamento parlamentar sobre a suspeição do Ministro Jobim.
Agora, com informações mais completas sobre o "porquê" das coisas, a notícia de 29 de maio, divulgada como um decreto da Providência pela Rede Globo, já começa a fazer sentido. Não o sentido pretendido pela Globo, que é o de dar à discussão um quê de imutabilidade da "coisa julgada", de revelação da Verdade Absoluta sobre fato controverso. A informação fica mais completa quanto mais se reporta à sua memória. Aqui faria sentido divulgar, também, o que registrava o Jornal da Tarde de 12 de junho de 2001, sobre o mesmo assunto. Dizia-se então que:
"Jobim pede laudo para urna eletrônica", para "confirmar a segurança do sistema".
Segundo a mesma fonte, disse o Ministro do TSE que "o modelo é seguro, mas as pessoas têm de acreditar no sistema e não em mim". E comparou o caso ao ditado sobre a mulher de César, de quem se diz que não basta ser honesta, tem de parecer honesta.
Agora, completado o arcabouço dos fatos que emprestam sentido à revelação decretada pelo Jornal Nacional de 29 de maio de 2002, podemos livremente opinar, como é de nosso direito constitucional fazer. O que desde logo salta aos olhos é o conteúdo "absoluto" conferido à prova, diverso do seu valor relativo, como é o caso em qualquer processo.
III.
Prova pericial para mostrar o que todos sabíamos é um contra-senso. Mas teríamos de perguntar mais além: se uma prova foi produzida, quem é o juiz da prova? O raciocínio pertinente é jurídico-processual e político-constitucional. O raciocínio processual auxilia naquilo que dita a regra tradicionalmente admitida em processo sobre a relatividade do valor da prova pericial. Em qualquer processo, o laudo técnico deve ser cotejado com outros elementos de convicção de que disponha o juiz. O técnico não julga pelo juiz, mas auxilia este, informa, esclarece. Via de regra, não se produz prova sobre fato notório ou incontroverso. Que a prova pericial tenha sido produzida, já se deduz logicamente que havia controvérsia sobre o objeto a provar, que é a própria segurança da apuração eletrônica. Agora, o fato de que a prova tenha sido ordenada, ou encomendada, ou simplesmente pedida (como se depreende da notícia de 2001) para provar o que todos sabíamos, ou seja, que a urna eletrônica é segura, já vicia desde a origem a idoneidade da prova. Via de regra não se pode pedir um laudo "para provar o fato x ou y". Seria o mesmo que o investigador requisitar ao serviço de criminalística um laudo para provar que a arma da vítima disparou, ou que o agente atuou em legítima defesa. Seja como for, o laudo técnico não se impõe ao juiz da prova, que só por ser leigo deva calar-se. O julgador pode acolher ou rejeitar o laudo, no todo ou em parte, determinar que se produza outro, dar ouvidos a outros peritos, etc… Esta é a disciplina, por exemplo, do processo penal: "O juiz não ficará adstrito ao laudo, podendo aceitá-lo ou rejeitá-lo, no todo ou em parte", artigo 182 CPP. "Se houver divergência entre os peritos, serão consignadas no auto do exame as declarações e respostas de um e de outro, ou cada um redigirá separadamente o seu laudo, e a autoridade nomeará um terceiro; se este divergir de ambos, a autoridade poderá proceder a novo exame por outros peritos", artigo 180, CPP. O laudo revelado no dia 29 de maio de 2002 não encerra o assunto de modo absoluto para que o juiz da prova cale e obedeça. Mas quem será afinal o juiz da prova? O raciocínio é político-constitucional.
IV.
Se a prova diz respeito à confiabilidade do processo de apuração eleitoral, juiz da prova é o titular do direito subjetivo à fiscalização do processo eleitoral, para que seja sério e idôneo. Mais do que interesse de quem concorre (dos que são elegíveis), o interesse na idoneidade da apuração é do eleitor. Seria supérfluo neste particular dizer mais do que Celso Três, quando abordou o aspecto da titularidade do direito à fiscalização. "A história da democracia evolui na razão direta do direito, liberdade e segurança do voto", afirma. A urna eletrônica, segundo o seu raciocínio, retirou da apuração o titular soberano do direito à fiscalização, que deixa de ser, nessa medida, soberano. E pior, retirou da apuração não somente o eleitor, mas também "Membros da Justiça Eleitoral, do Ministério Público, dos Partidos Políticos, Candidatos". O que se nos pede, afirma Celso Três, é para "confiar no atestado técnico". O risco que corremos é enorme, pois que "enquanto a adulteração tradicional fazia-se voto a voto, a eletrônica procede-se no atacado. Pior. Seu rastro, quando existente, é infinitamente menos perceptível".
Na realidade, há na petição à fé na infalibilidade da máquina um regresso e não progresso. Porque o progresso democrático teria de ser também progresso racional, e a fé na infalibilidade da máquina é um retorno ao pensamento mágico. O mesmo acontece no plano das comunicações televisivas e de mídia em geral, em que, como diz Ramonet: "Uma aparelhagem de estimulação eletrônica se mostra, se exibe, funciona, "comunica", como se quisesse dizer-nos: "O que mostro a vocês é verdadeiro, porque é tecnológico". E nós acreditamos nela porque somos enganados, porque ela nos intimida, nos impressiona, enche nossos olhos e nos persuade de que um sistema capaz de tais proezas tecnológicas não pode mentir" (A Tirania da Comunicação, p. 36).
Como titulares soberanos do direito de fiscalizar a idoneidade do processo eleitoral, somos todos juízes naturais da idoneidade da apuração eleitoral. Como cidadãos modernos, que ousamos fazer uso de nossa própria razão, não estamos "adstritos ao laudo", como dispõem as leis processuais. Mas e daí? Que mais podemos fazer?
V
O Risco de Fraude e suas Conseqüências
Podemos, como cidadãos, alardear essa nossa convicção, como é de nosso direito constitucional. Podemos propor soluções outras. Uma dessas soluções vem endossada por Celso Três: que pelo menos sejam impressos em papel os vestígios de nossos votos, desde que assegurado, de algum modo, o sigilo. Teríamos então a agilidade da tecnologia, e a "memória" da soberania nacional em papel não virtual, que não desaparece, que pode ser contado e recontado.
Até isso parece que será recebido como saudade da Velha República, pelos oportunistas ou por otimistas ingênuos, crédulos em que a rapidez eletrônica seja por si equivalente a progresso democrático, mas sem o titular da democracia que é o povo soberano, que, em matéria de progresso, atrapalha muito. Precisamos manter aceso o debate sobre a apuração eletrônica, para que não "transite em julgado" o decreto de segurança, que tem conteúdo de discricionária emergência similar ao de uma "medida provisória". Precisamos demonstrar o risco que corremos, e o risco que corre a existência do Estado constitucional, pela simples possibilidade de fraude. Porque uma possibilidade dessa natureza, se atualizada, praticamente não deixará vestígio. Deixará abalada em suas bases, porém, a confiança no pacto de seriedade que deve sustentar uma sociedade civilizada. Poderá romper o limite da esperança que faz com que a vida ainda seja possível num Estado que está no limiar da guerra civil. Podemos ainda refletir sobre o sentido que tem o verdadeiro "progresso democrático", que não é sinônimo de progresso tecnológico. Pode ser compatível com ele, pode ser que tenha de "vetar" certos métodos.
Discutiremos, adiante, duas das possibilidades aqui suscitadas. A primeira, quanto às sérias conseqüências do "alto risco de fraude" da apuração eleitoral, mediante o raciocínio histórico (analógico e indutivo). A segunda, mediante o raciocínio político, que discorre sobre fins e meios. Raciocínio dedutivo, formulado sobre premissas de fato e valor. Nenhum dos dois impõe-se ao leitor como a Verdade absoluta, porque é da natureza da verdade que se formula sobre bases racionais (ao contrário da verdade mítica) que considere o sagrado direito de cada um de "ousar fazer uso de sua própria razão".
Falar do que não aconteceu seria impossível se não fosse válido o recurso à analogia histórica. Como o raciocínio paradigmático costuma ser facilmente contestado mediante um argumento inválido, será conveniente começar por refutá-lo. Sempre que alguém afirma o risco de seguir as pegadas de outro evento histórico conhecido, apressam-se os defensores da situação de coisas existente ao ataque com o argumento simplório sobre o que "o Brasil não é". Não há frase mais fácil de dizer, e verdade mais fácil de reconhecer como meia-verdade. O Brasil de fato não é nenhum outro lugar em nenhum outro tempo. O Brasil de 2002 não é a Alemanha dos anos 20, não é o México da "ditadura perfeita" do PRI, não é o Peru, não é a Argentina, não é a Colômbia, etc. Nem o Brasil nem outro país podem ser ou estar em outro lugar ou em outro tempo. O que o raciocínio paradigmático mostra é o caminho potencial de um país, analisando outro que percorreu caminho semelhante no passado. Do nosso futuro, jamais decretamos coisa alguma pela ciência ou pelo conhecimento histórico. Foram os modernos que tiveram a pretensão de ditar regras científicas à história, inclusive para o devir. E falharam gravemente. Os antigos tinham menor pretensão, e maior acerto. Aristóteles definia com precisão a validade do raciocínio paradigmático em assuntos de política. O paradigma não apresenta o futuro tal e qual. Mostra perigos. Uma vez conhecido o passado (e pode-se conhecer melhor o que terminou) podemos deduzir possibilidades de futuro. É pelo raciocínio paradigmático, dizia Aristóteles, que se demonstra que alguém já usou de semelhantes recursos e tornou-se um democrata ou um tirano. O raciocínio do exemplo não funciona como relação de todo à parte, nem de um todo em relação a outro, mas pela relação de parte à parte, de semelhante a semelhante, quando ambos caem dentro do mesmo gênero, mas um deles é mais bem sabido que outro. Por exemplo, "para provar que Dionísio almeja à tirania, porque ele pede uma guarda pessoal, poder-se-ia dizer que Pisístrato, antes dele, e ainda Teáguenes, de Megara, fizeram o mesmo, e quando obtiveram o que pediam, tornaram-se tiranos. Todos os outros tiranos conhecidos podem servir como exemplo de Dionísio, de cujas razões, todavia, para pedir uma guarda pessoal, nós ainda não conhecemos. Todos os exemplos estão contidos na mesma proposição universal, de que aquele que almeja à tirania pede uma guarda pessoal" (Aristóteles, Retórica, I,ii, 19).
Não se diga que o abuso do raciocínio paradigmático possa anular o seu valor. Qualquer juízo pode ser abusado. O oportunismo dos editoriais que vêm em uníssono apelando ao "pânico" (somente remediável com "competência"), a súbita elevação ao debate diário de estatísticas de "risco Brasil", roupa nova para argumentos antigos do tipo "fuga de capitais", "intranqüilidade do mercado e da bolsa", e outros argumentos do mesmo gênero, que se legitimam pela mera reiteração, não autorizam a desconsiderar o raciocínio histórico sério.
Cogita-se, sob razoáveis fundamentos, que o processo de apuração eletrônico é inseguro, e de "alto risco de fraude". Qual é o risco da fraude, num Estado constitucional e democrático (em sua projeção ideal, isto é, no plano legal-constitucional) que vive, há pelo menos uma década, em plena anormalidade constitucional e se constrói (ou destrói) pela corrupção institucionalizada, produzindo, para reparto do butim entre os favoritos do poder, o esfacelamento da esfera pública em micropoderes feudais, e cuja sociedade civil dá sinais de exaurimento, cansaço e desespero? Num Estado desse tipo, não há maior dificuldade de dizer que o risco de fraude eleitoral é de funcionar como o estopim de uma bomba que destrói o que resta de "forma jurídico-constitucional" no Estado, deixando livre o terreno para a formação de poderes sociais paraestatais armados, de "declaração" formal de uma guerra civil até agora não declarada. O exemplo histórico mostra que o cansaço com o abuso das regras democráticas por oligarquias é a causa da falência da idéia de Estado, e do recurso à ação direta.
O exemplo que pode iluminar nosso presente, a história acabada, cujos contornos conhecemos melhor do que a nossa, é o paradigma do México e da fraude eleitoral de 1988, que desencadeou no primeiro dia de 1994 o que foi, nas palavras do New York Times, a "primeira guerrilha pós-moderna", e sobre cujo significado devemos nos interessar.
VI
A "ditadura perfeita" mexicana e a guerrilha de 1994
Mário Vargas Llosa certa vez referiu-se ao México como a "ditadura perfeita". A ditadura mexicana não foi uma ditadura militar, como tantas outras na América Latina. Estas, por serem regimes de coerção explícita, não foram tão perfeitas quanto aquela, que se legitimou à "sombra" de um imaginário sublime de ideais revolucionários e populares, viveu à "sombra da Revolução". É a partir desse legado imaginário, manipulado para esconder o real conteúdo da ditadura, que o México criou o monólogo institucional, basicamente através da cooptação de todos quantos queiram "participar", desde que sob as fileiras, e mediante as regras dos caciques do partido único.
A história contemporânea do México, que começa com a Revolução Mexicana do início do século 20, até o levante armado de 1994 (do Exército Zapatista de Libertação Nacional), apresenta interesse paradigmático. Trata-se aqui de um regime que se legitima durante mais de 70 anos, sobre a "herança" do imaginário de uma revolução popular, e que não obstante vai criando uma ordem social a cada década mais repressora e cruel. Os mecanismos de "legitimação" vão-se modificando, a coerção e a manipulação ideológica (em 1988, a descarada fraude) vão tomando o lugar da "herança" revolucionária, mas no todo o que se indaga é como se mantém uma estabilidade forjando consensos, praticamente eliminando a oposição.
Maior interesse apresenta ainda a história circunscrita entre 1919 a 1989 quando sabemos que em 1994 irrompeu no México, como um epílogo à história de dominação do PRI (antes PRN) um "retorno do reprimido" violento, que se imaginava deslocado do imaginário político dos anos noventa, representado pela rebelião armada na região do Chiapas.
A descrição da política mexicana em termos de categorias como "esquerda/direita" presta-se a incompreensões e legitimações ideológicas, porque o regime que sucede à ditadura de Porfírio Díaz nasce de uma revolução popular duplamente traída: em 1914, com o assassinato de Emiliano Zapata, e em 1988, com a fraude eleitoral que levou à presidência o candidato do PRI Carlos Salinas de Gortari, quando seria vencedor o candidato do PRD, Cárdenas, filho do general Lázaro Cárdenas, em cujo mandato, durante a década de trinta, foram feitos os únicos "assentamentos" (que lá se chamaram ejidos) dignos de nota, isto é, como política governamental de contenção do problema agrário, ainda que não seja bem a Reforma Agrária sonhada por Zapata, traída desde a primeira versão da Constituição mexicana.
O ano de 1988 fecha o ciclo, e representa o "fim da Esperança", principalmente a partir do momento em que o governo usurpador declara o fim "oficial" da questão agrária, em 1992, com a modificação do art. 27 da Constituição.
É digno de interesse, para nós, o modo como a "revolução" institucionaliza-se em forma constitucional e burocrática, vivendo de modo "aparente" como "revolução", mas criando, ao contrário uma verdadeira restauração, principalmente pela astúcia com que co-opta lideranças populares para a "nomenclatura" de burocratas, que enriquecem à custa da inserção na vida do Estado. Depois da revolução, que segundo alguns teria morrido com o assassinato de Emiliano Zapata, engendrado pelo próprio governo revolucionário, aos 10 de abril de 1914, vem a restauração, pois é preciso governar e as massas revolucionárias não tinham experiência e proficiência. Tal como a de Weimar, e ainda como a nossa constituição brasileira de 1988, a mexicana foi praticamente escrita pelas "esquerdas" e continha os princípios fundamentais de um Estado Social: o compromisso com a reforma agrária, com os direitos dos trabalhadores, entre outros. É interessante também como, em contrapartida, apenas um "artigo" interessava aos novos governantes, que era o "estabelecimento de um Executivo forte, que estaria em condições de enfrentar as situações de emergência", uma espécie de ? 2? do art. 48 da Constituição de Weimar, assim como só interessou à direita brasileira a "medida provisória", instrumento de governo desde 1989. Voltando ao México, a partir de 1936, a "revolução" já institucionalizada torna-se pouco mais que uma idéia ou legado de esperança hábil a legitimar o regime presidencialista forte. A reforma agrária é pouco mais do que letra morta na lei. "A Revolução deixa de ser uma força real depois do mandato de Ávila Camacho (1940-1946), mas seu prestígio histórico e a aura de transformações profundas que ela produziu continuam a emprestar legitimidade aos governos mexicanos na segunda metade do século vinte".
Pouco a pouco aparecem os "ídolos" da eficiência (que integrará oficialmente a Constituição brasileira a partir de Emenda de 1998), da competitividade no mercado mundial, chegando a política econômica a ser abertamente fundamentada (como a brasileira da ditadura militar) na idéia de que era "preciso primeiro criar riqueza para depois poder distribuí-la". Aparece a necessidade de industrialização à custa de investimento estrangeiro, sendo que a dívida externa mexicana quadruplica entre 1971 e 1976. É o período do "milagre" após o qual vem a dura realidade, quando o Fundo Monetário Internacional começa a exigir medidas de contenção do déficit, etc. Mas o regime mantém legitimidade. "Ao contrário de outros sistemas autoritários, o sistema mexicano não se interessa em excluir aqueles que queiram participar do poder, preferindo atraí-los e incorporá-los em suas fileiras".
De 1968 a 1984 o milagre econômico desaba, ao mesmo tempo em que crescem a violência física e ideológica sob o aspecto de "monólogo institucional", uma tradição de unanimidade em torno ao problema-chave da política, a sucessão, que institucionalizou o "tapadismo" e o destape, que são o silêncio em torno ao nome do sucessor para oportuna revelação triunfal, à véspera do pleito. Tudo que escapa às normas das negociações e barganhas intramurais do partido e do governo é reprimido com violência, como greves em estradas de ferro, invasões de terra e manifestações estudantis de 1968. A partir de 1970 há uma espécie de "abertura" sobre a idéia de que é preciso fazer algumas mudanças, "de modo tal que tudo fique como está". "A renovação dos instrumentos ideológicos de legitimação foi um importante aspecto da mudança de tom, porque em 1970 os poderes públicos depositaram enorme ênfase no uso da publicidade e dos "mass-media". O período político até 1982 vê, ao lado disso, "notória corrupção do primeiro escalão dos círculos políticos". O presidente Miguel de la Madrid, em seu discurso de posse, em dezembro de 1982, chega a declarar que o "México experimenta uma grave crise. Sofremos uma inflação que chega a quase 100 por cento nesse ano (…) Vivemos numa situação de emergência. Não é tempo para hesitações (…), é tempo de decisão e responsabilidade".
Pesquisas mostram que em 1987, após seis anos de crise econômica, por incrível que pareça, os mexicanos eram mais iguais, porém "mais iguais na pobreza". Os níveis de criminalidade e a falta de segurança aumentam com rapidez. No final dos anos 80 há uma aceleração também dos processos de concentração de riqueza. Para as classes médias, considerando a perspectiva de mobilidade social, esta era tida como uma "década perdida". 1988 apresenta um Plano Econômico que consistia basicamente em "congelamento de preços e salários" juntamente a políticas de ajuste fiscal e de juros, ao qual seguem-se outros planos, inclusive de "dolarização" da economia. Fala-se agora em "mudança" do Estado. Carlos Salinas de Gortari apóia-se sobre as idéias de "globalização" e a necessidade de uma estratégia de competição no mercado mundial.
Até aqui apresentamos aspectos da história recente do México tal como descrita por Héctor Camín e Lorenzo Meyer (In The Shadow of the Mexican Revolution – Contemporary Mexican History, 1910-1989. Tr. Luis Alberto Fierro. Austin: University of Texas Press, 1994. 287pp). Segundo os autores, alguns traços são essenciais para a compreensão da "ditadura perfeita mexicana". Entre eles, está a função política do presidente. O regime presidencial como uma instituição de poder quase absoluto, ancorado na saída constitucional das "soluções emergenciais", parece ser idêntico ao nosso. Mas há também outra semelhança, que é o papel do presidente como o líder de uma extensa burocracia. Segundo os autores, a solução constitucional de um Executivo forte veio somar-se à tradição indígena e colonial, paternalista e autoritária, do passado mexicano, no qual "as atitudes políticas dos vice-reis estabeleceram um tipo de líder similar aos posteriormente conhecidos como presidentes, um político astuto que deve engajar-se em negociações com os diversos poderes, tentando conciliar forças distintas, que deve atuar simultaneamente como um enorme poder discricionário e uma enorme necessidade de conciliação e barganha. O século dezenove somou a sua própria herança caudilla à tradição colonial, a enraizada cultura do homem providencialmente enviado". A partir de 1940, porém, a herança de carisma e autoridade dos caudillos não se fixa mais nos "caciques" da política, mas no próprio partido, na posição do presidente. Como resultado disso, os detentores desse cargo "passam do "nada" ao poder, e do poder novamente para o "nada"". Essa é uma das razões de estabilidade, além do poder enorme sobre a burocracia numa cultura patrimonialista como a mexicana. "Em 1970, um presidente da república podia distribuir entre seus seguidores seis mil posições, entre as mais bem remuneradas e mais consideradas no país. Em 1982, a distribuição alcançava dez mil cargos. Estamos falando de um enorme poder de premiar, punir e distribuir renda, concentrado numa única instituição, a mais importante do sistema político mexicano".
A burocracia, por sua vez, passou a ser vista pela sociedade como a forma pela qual "membros das classes médias fazem fortunas dentro do Estado, e vêem este como a fonte de sua mobilidade social". A burocracia funciona assim como um sistema de "elites no poder". A cada seis anos surge uma possibilidade de renovação nos cargos, sendo que cada um desses cargos também traz consigo a possibilidade de serem nomeados outros tantos. A burocracia é o cenário de "ingressos discricionários de renda, ocasião para enriquecimento pessoal e a pura transferência de recursos públicos para mãos privadas, uma transferência que normalmente transforma políticos em homens de negócios, ou simplesmente em pessoas ricas, que abandonam suas atividades públicas para depois concentrarem-se nessas atividades privadas". Sobre o partido, anotam que é notável a ausência de uma história que revelaria a sua presença no cenário político (e esse parece ser um traço comum aos partidos de direita, que não se interessam pela história escrita, até porque não devem deixar muitos vestígios de suas práticas). Há, ainda no aspecto da elite política, uma mudança nas profissões dominantes, que passam do império dos advogados para o reino dos contadores ("que se encarregam de contabilizar os excessos (depois da festa, vêm as contas)". Há também uma gradual mudança de local das elites burocráticas, que cada vez mais vão ocupando postos em "companhias paraestatais". A imobilidade da burocracia e a institucionalização na vida partidária do "monólogo" tendem a tornar a vida política pouco atraente para a juventude, que começa a aproximar-se mais e mais do "american way of life".
A grande pergunta que a história de domínio mexicano lança é a seguinte: "Quais são os elementos que permitiram a uma sociedade tão injusta como a mexicana viver em paz por tanto tempo?". Segundo os autores, o mais impressionante é o poder legitimador de uma tradição política colonial, uma tradição "de tutela autoritária, na qual o poder é representado como venerável, imutável, e uma instituição superior, destinada a proteger o povo, que por sua vez é representado como uma massa inerte que estará na posição de carência de uma redenção". O que se precisa é de compreender os "mecanismos de consenso" que legitimam uma regra visivelmente injusta por muito tempo. É verdade que esse "monólogo" institucionalizado pela legitimação ideológica e violenta, mesmo que duradouro por mais de setenta anos, iria causar reação violenta. Não surpreende tanto que tenha ressurgido a "ação direta" na Rebelião do Chiapas, que se desencadeou a partir de 1? de janeiro de 1994. Mas para compreender algo mais além valeria a pena resenhar, ainda que brevemente, os motivos e significados de Chiapas. À história contada por Camín e Meyer, que termina em 1989, teremos de adicionar fatos novos e relatos jornalísticos, realizados no instante de ocorrência do fato político novo, que é a guerrilha em Chiapas, em 1994.
VII
Um paradoxo aparente: uma guerrilha liberal
No primeiro dia do ano de 1994, quando se inauguraria a entrada do México no Acordo de Livre Comércio dos Países da América do Norte (NAFTA), o Exército Zapatista de Libertação Nacional tomou posse de diversas municipalidades no Estado de Chiapas, Sul do México, divulgando em panfletos que declarava guerra ao Exército mexicano, "o pilar de sustentação da ditadura, sob a qual sofremos. Avançaremos rumo à Capital… (etc.). (ass. EZLN, (a partir de agora descrevemos os eventos de Chiapas tendo por base o relato jornalístico de John Ross (Rebellion from the Roots – Indian Uprising in Chiapas. Monroe: Common Courage Press, 1995. 424pp).
Não é simplesmente "explicável" pela extrema pobreza da região a rebelião armada dos neo-zapatistas. O atraso dos estados de Chiapas e Oaxaca, no extremo Sul do México, é político, segundo declara o presidente eleito em 2000, em entrevista a Veja (n 32, 9 de agosto de 2000). Vicente Fox, o primeiro presidente "de oposição", depois de 71 anos de estabilidade do PRI, debita a guerrilha à falta de democracia. "Naquela região houve falta de democracia e desenvolvimento e sobrou repressão".
Apesar de permanecer como a "última fronteira do México", não só em distância mas em pobreza e atraso, o estado de Chiapas sempre fora um reduto de apoio à política do PRI (em 1988, o partido tinha 89.9% de votos no Chiapas). É possível ler Chiapas como uma revolta do campesinato contra a política de exclusão. Segundo Collier, "isolamento cultural, exclusão política e depressão econômica combinaram-se para deixar as pessoas do que é normalmente chamado de "a última fronteira do México" sem esperança e mesmo sem satisfação das mais elementares carências vitais" (COLLIER, George & QUARATIELLO, Elizabeth. Basta! Land and the Zapatista Rebellion in Chiapas. Oakland: Food First, 1994. 179pp).
Junto com a "modernização triunfalista" de Salinas de Gortari, que seria o bilhete de ingresso do México no "Primeiro Mundo", a partir do Acordo de Comércio (NAFTA), viria a pá de cal sobre as promessas de Emiliano Zapata, o líder da Revolução mexicana do início do século, cedo traída pela reação. A Reforma Agrária, ao ser descartada para sempre do horizonte, a partir de 1992, abriu caminho para a radicalização pela via armada. A reforma legal e revogação do art. 27 da Constituição, que durante quase um século assegurou o poder político no México "à sombra" da lenda da Revolução popular que derrubara a ditadura de Porfírio Díaz, retirou a última esperança, ou no dizer do Subcomandante Marcos:
"você pode dizer que tomaram nossas calças e as venderam. Que podemos fazer? Nós fizemos tudo que podíamos em termos legais, no que se refere a organizações e eleições, e tudo para nada…"(citado em Collier, p. 45).
De certo modo, o "milagre" de Salinas de Gortari para a modernização mexicana, e ingresso no mercado mundial, refazia o traçado da política de Porfírio Díaz, que esteve na presidência de 1876 a 1910: desenvolvimento e abertura para os mercados, à custa da pauperização das populações nativas e campesinas. O "neo-zapatismo" surge para denunciar que o "moderno" talvez possa ser um salto sobre a modernidade, mas para trás.
O armamento das populações indígenas e campesinas vinha sendo há algum tempo adquirido da polícia, para proteção contra os pistoleiros dos latifundiários. Anote-se que entre 1974 e 1987, oitenta por cento das agressões registradas pela imprensa, em Chiapas, são atos de violência contra camponeses da parte de pistoleiros e autoridades públicas, judiciais ou polícias políticas estaduais ou federais, e ainda do exército (cf. Collier, p. 79).
"No que se refere aos camponeses, o EZLN surgiu como um grupo de autodefesa contra os pistoleiros contratados pelos rancheiros, que tentam tomar a terra e os maltratam, limitando o avanço social e político dos índios. Daí eles pegaram em armas para não ficarem indefesos. Então, depois, os companheiros viram que não era suficiente permanecer em autodefesa de um único ejido ou comunidade, mas estabelecer alianças com outros e começar a formar contingentes militares e paramilitares, ainda com propósito de autodefesa" (subcomandante Marcos, citado em Collier, p. 84).
Impressionam, na rebelião do Chiapas, dois fatos: (1) que durante dez anos tenha sido criada uma força militar, com acesso a armamento "militar" (adquirido no contrabando formiguinha e da própria "polícia" ou de milícias privadas, que vendiam armamento antigo para troca por mais moderno), que tenha assaltado algumas municipalidades e se retirado, após a entrega de suas "declarações de guerra", e (2) que as declarações de guerra dos neo-zapatistas não venham em linguagem tradicionalmente revolucionária (isto é, não se reportam ao imaginário marxista-leninista) mas falam de seu direito a serem algo mais do que mera população passiva e circunscrita a terras demarcadas para megaprojetos turísticos do tipo "Mundo Maia". Denunciam a corrupção política, o monólogo institucionalizado, o mito do ingresso no Primeiro Mundo globalizado. É uma guerrilha que não quer "assaltar o poder", seguindo o imaginário de Cuba e das outras guerrilhas latino-americanas. Ela reclama o "diálogo verdadeiro", ter voz e voto, sem fraude, sem enganação. Por paradoxal que pareça, é uma guerrilha liberal. Traduz esse espírito a fala dos líderes revolucionários, como o exemplo seguinte, por ocasião das "Jornadas de Paz e Reconciliação" promovidas pelo Bispo Samuel Ruiz García, na Catedral de San Cristóbal, em que um dos líderes zapatistas afirma que:
"aqui encontramos ouvidos atentos, abertos para ouvir as verdades que dizemos. O diálogo de San Cristóbal foi um diálogo verdadeiro. Não houve mentiras ou ambigüidades. Nada ficou escondido entre os nossos corações e os das pessoas de razão e autoridade" (Ross, p. 247).
O escândalo da fraude eleitoral, em 1988, e o decreto de morte da esperança de reforma agrária, em 1992, com a revogação do art. 27 da Constituição mexicana, parte essencial do projeto de aquisição do bilhete de entrada no "Primeiro Mundo" (o Tratado de Livre Comércio, ou NAFTA), foram, sem risco de exagero, os móveis principais da rebelião do Chiapas. Héctor Camín registra em sua história sucinta do México no século vinte a fraude eleitoral de 1988 como um evento lateral, uma "suspeita" (talvez por falta de espaço para detalhes, mas talvez também porque, segundo Ross, Camín fora o intelectual querido do governo Salinas de Gortari). Todavia, se contamos com as observações de John Ross, não houve mera suspeita. Após o início das apurações, descreve Ross, fiscais do PAN (que não era o partido de oposição ao PRI, mas um partido de "oposição consentida", um satélite do PRI) verificaram que o candidato Cárdenas do PRD saía vencedor com enorme margem de vantagem, sendo então convocada, no fundo da sala, uma reunião emergencial de técnicos. Poucos minutos depois, a tela de apuração saiu do ar.
"Os técnicos da RFE declararam os PANistas personae non gratae, sendo então estes conduzidos até a porta da rua. "O sistema entrou em pane", declarou o Secretário do Interior (…) O sistema ficou "em pane" por uma semana, enquanto dezenas de milhares de votos para Cárdenas eram encontrados abandonados em depósitos de lixo ou descendo abaixo pelos rios do México Central. Quando a apuração foi retomada, Salinas foi declarado vencedor com pequena diferença decimal acima dos 50%, a menor margem de vitória jamais atingida por um presidente eleito do PRI" (Ross, p. 336).
Por muitos, Salinas foi considerado um "usurpador" cuja traição só podia comparar-se à de Carranza (responsabilizado pelo assassinato de Emiliano Zapata).
A rebelião neo-zapatista é produto direto do "bilhete" de ingresso no Primeiro Mundo, adquirido sobre a base de corrupção, fraude, enriquecimento de poucos ligados ao governo, e extremo sacrifício dos "fracos". É um movimento de libertação tipicamente liberal, no sentido de ser uma oposição à usurpação do poder constitucional outorgado pelo povo, que não planeja assaltar o poder e impor uma nova ordem, mas apenas que haja "regras" confiáveis para que o povo escolha outro governo. No dizer de Marcos, "há uma diferença enorme entre as guerrilhas dos anos cinqüenta, sessenta e setenta, e essa de hoje. Antes, dizia-se: "vamos nos livrar desse governo e impor esse outro governo". Nós dizemos: "Não, o sistema político não pode ser resultado de guerra". A guerra só deve limitar-se a abrir espaço político para que as pessoas realmente tenham alguma escolha. Não faz diferença quem vai vencer, não faz diferença se vai ser a extrema direita ou a extrema esquerda, desde que haja confiança por parte do povo" (Subcomandante Marcos, entrevista a Medea Benjamin, em KATZENBERGER, Elaine [ed] First World, Ha, Ha, Ha! The Zapatista Chalenge. San Francisco: City Lights, 1995. 258pp).
O primeiro assombro que a lição mexicana nos traz é a perspectiva de que a próxima eleição presidencial, em 2002, que já não contará com a legitimação plebiscitária que tiveram as de 1994/98, seja "totalmente eletrônica", sem que se tenha qualquer vestígio físico dos votos.
A nossa experiência aproxima-se demasiado do México de Salinas de Gortari, que "venceu" a eleição presidencial mexicana. O que ensina o exemplo mexicano é que a fraude pode demorar a aparecer, mas aparece. E então é preciso advertir para o risco de que "todos os enganados" não tenham tanta paciência como sempre esperam os usurpadores. Até porque Chiapas mostra que a paciência pode durar setenta anos, mas não dura para sempre.
Chiapas representa, simboliza e consagra a libertação de um regime de fraude, e, como toda revolução contra a opressão e usurpação de poder, deixa para nós, espectadores, uma lembrança que é ao mesmo tempo um alento e um entusiasmo. Segundo Ross, "muita coisa mudou no México desde que o Exército Zapatista de Liberação Nacional tomou San Cristóbal depois da meia noite daquele gélido ano novo, o que é agora uma distante e congelada memória. A sociedade civil tornou-se mais forte e as populações indígenas mais determinadas do que nunca a assumirem o seu lugar na história hoje e agora. Marcos e os zapatistas mostraram a seus conterrâneos que audácia – e poesia – podem alterar o peso na balança entre a base do México, em que 18 milhões de pessoas continuam a viver em pobreza absoluta, e a cobertura onde os 24 novos bilionários de Salinas festejam a luxúria neoliberal" (p. 404).
O maior alento é o de que nem mesmo ditaduras perfeitas são necessidades históricas, de que existem "possibilidades" diversas daquelas decretadas pelos mais competentes e perfeitos dentre nossos césares.
Fechado o pano do paradigma, retornemos à "mulher de César".
VIII
A apuração eletrônica deseduca
Passemos ao raciocínio dedutivo, que observa o fato e o relaciona a valores. O valor controverso que se aplica ao fato em questão é o de progresso. Não há conceito mais facilmente abusado do que o de progresso. E contudo precisamos dele, até mesmo porque somos favoráveis aos progressos, em plural. Progressos humano, democrático, cívico, participativo. Para evitarmos o vazio conceitual será conveniente adotar um conceito de progresso que contém ao mesmo tempo valor. O valor que elegemos é a recusa do utilitarismo. Qualquer conceito de progresso que conte perdas e colheitas de uma instituição ou de um evento facilmente instrumentaliza outros. Facilmente são usados os argumentos do progresso histórico sem contar que aqueles que funcionaram nesse progresso apenas como "degraus" talvez não aceitassem essa condição e esse sofrimento. Adotamos, no conceito de progresso, a fórmula de Collingwood, também subscrita por Agnes Heller em sua Teoria da História, segundo a qual só se pode falar em progresso onde há ganhos sem perdas correlatas. Onde se tiver de contar a "perda", não há progresso.
Estabelecido o conceito, podemos avaliar se há "progresso" na adoção da apuração eletrônica de modo quase independente da segurança ou insegurança do sistema. Ainda que fosse zero o risco de fraude na apuração eletrônica (apenas para argumentar) pode-se livremente discutir se o retrocesso democrático por ele implementado por si só já não justifica que o sistema seja abolido ou modificado radicalmente, para que a máquina sirva aos homens e mulheres, e não o contrário.
O progresso democrático não é em tudo equivalente ao progresso tecnológico. Pode haver acordos entre ambos, mas pode haver antagonismos. A apuração manual da eleição presidencial possibilitava fraudes. É verdade. Mas sabemos das fraudes que foram possíveis. E saberíamos como usar a máquina para diminuir as fraudes conhecidas. As fraudes na apuração manual estimulavam os competidores a "mobilizarem" o eleitor para a fiscalização da apuração. Com mobilização popular, o titular soberano do direito à idoneidade do processo eleitoral podia estar ali, frente a frente com o voto. Quem já tiver presenciado uma apuração terá conhecido a festa cívica e democrática desse evento, que é um valor em si. A apuração manual combina participação da cidadania (de pessoas físicas e reais, não de pessoas jurídicas), com a possibilidade de fiscalização da soberania pelo próprio titular.
Os partidos devem poder contar com seus exércitos de fiscais para apuração, porque só esse fato é já positivo e educativo, chama o cidadão para participar ativamente do processo eleitoral, que ganha vida na contagem "voto a voto", como deve ser. Mesmo os candidatos que não tenham militantes, mas apenas soldados contratados para a apuração, uniformizados e pagos por hora, mesmo esses são forçados a fazer o "jogo" da democracia. E mesmos esses fiscais pagos participam na festa da democracia, que se torna verdadeiramente um evento cívico. Sem falar na demora que rende ao telespectador o acompanhamento por alguns dias das prévias, das parciais, etc. Tudo isso foi derrogado pela urna eletrônica, que é veloz demais e apresenta o resultado já "totalizado" e uniforme, não muito diferente da velocidade do "decreto", que é o instrumento de governo da democracia brasileira desde 1990.
Apurações voto a voto são momentos de festa democrática. Os votos anulados, ou anuláveis, e as discussões que suscitam, longe de representarem um "perigo" à certeza da vontade do eleitor, são o símbolo de que um cidadão é um "valor em si", único e incomparável. São os votos nulos e anuláveis, com mensagens, votos com beijo de batom, pedidos disso e daquilo, e tantos outros que discutíveis, discutidos e decididos pela junta apuradora, separados para posteriores recursos, todos e cada um dizem da democracia o que ela deve ser: um procedimento de pessoas reais e não virtuais. A democracia tem isso de belo, que um cidadão é um voto, tão igual quanto o de qualquer outro cidadão. Nenhum cidadão poderá fazer seu voto valer por 25, a não ser por mágica. Não há nenhum atraso na eleição norte-americana, contada e recontada. E muito bem sabemos como os norte-americanos teriam urnas e apurações eletronicamente mais velozes do que as nossas, se quisessem. Não quiseram, e isso representa uma vontade política e cívica, vontade que é, na democracia americana, uma boa lembrança da democracia original dos "pais fundadores" dos Estados Unidos.
A apuração manual, inclusive pela demora, que nem é tanta, educa o cidadão para a política. A apuração eletrônica deseduca, causa rejeição ao processo eleitoral pela possibilidade de manipulação, mas também pela ausência do elemento "humano". A "máquina de votar" poderia ajudar na apuração, mas jamais ser soberana, como se tornou a nossa engrenagem, mais submetida a institutos de direito privado (direitos autorais) do que ao direito constitucional.
Um sistema de progresso tecnológico pode ser seguro, e ainda assim permanecer sendo indesejável na democracia que tenha vida e feição de soberania popular. Não há na apuração eletrônica, como bem referiu Celso Três, "nada de manual, táctil, visível, audível, odorante ou sápido".
Não há mesmo, e a democracia resultante terá a mesma natureza. Insípida, sem gosto de soberania popular, sem graça.
Como diz o Ministro Jobim, nenhuma democracia sobrevive se tiver de depositar confiança numa pessoa ou num grupo de pessoas, para que o processo eleitoral seja idôneo. Mas também pode não sobreviver se tiver de depositar confiança num "sistema" de informática. O que se nos pede, em última instância, é fé. Um regime em que a fé é o elemento diferencial no espaço público não pode ser chamado de democracia moderna. O regresso democrático é inegável.
Aqueles que nos reportamos aos vestígios da Ilustração e que nos cremos democratas devemos engajar-nos na construção do progresso. Por isso é possível que tenhamos de lutar contra o "método" híper-moderno que nem mesmo a democracia norte-americana, país que detém capacidade tecnológica mais avançada do mundo, quis adotar.
IX
A Mulher de César e a Ética Imperial
No que fala, até mesmo por força de expressão, a pessoa revela-se. Por inofensivo que pareça, o dito sobre a mulher de César na realidade revela uma feição do regime imperial sob o qual vivemos, e sua ética romana. A ética imperial da "mulher de César" foi a marca registrada do governo Fernando Henrique Cardoso, e deixou até mesmo vestígio documental. Apenas por ter "legislado" sua ética, distinguiu-se da ética de Collor, que fora de mesma natureza. O "código de ética" não-escrito da Administração Federal, na década de 90, foi sempre a regra do amigo-inimigo. Collor, a pretexto de enxugar a máquina estatal, liberou todos os setores da Administração para livrarem-se de indesejáveis. Antes de extinguir cargos, foram postas em "disponibilidade" pessoas e depois arrumado o texto do decreto para que tais pessoas combinassem com os cargos extintos. No rápido intervalo de Itamar Franco, é justo registrar, foi produzido um Código de Ética (Decreto Federal 1171/94) bastante decente, que na verdade somente explicita o art. 37 da Constituição. Já Fernando Henrique inova e retorna ao espírito de Collor aqui também. Com alguma justiça (permeada de ideologias, como a idéia – falsa – de que todas as democracias do mundo têm problemas com corrupção) reconhece que a base do funcionalismo é honesta (Exposição de Motivos 37, Casa Civil da Presidência da República, 18/8/2000). Afirma-se ali que "a base ética do funcionalismo de carreira é estruturalmente sólida, pois deriva de valores tradicionais da classe média, onde ele é recrutado". O problema, segundo o Governo, está na "alta administração" (o que é verdade). Daí criar-se o Código de Ética da alta administração, com o objetivo colateral, escrito nele mesmo, de proteger o administrador público de "acusações infundadas". A ética da alta administração é essencialmente absolutista. O rei não comete crimes, nem os seus auxiliares diretos. Por isso a "alta administração" deve ser protegida. Daí porque a Advocacia-Geral da União deva ter funções laterais, novas e inconstitucionais, entre elas a de defender em juízo os servidores da alta administração, quando assim entender conveniente (a autorização já vinha, disfarçada, em Medida Provisória, depois transformada em Lei de n.? 9.028, de 12/4/1995, art. 22). O Governo inova com a necessidade, explícita, de "parecer" honesto, que é a consigna romana do seu espírito geral. Como está escrito na Exposição de Motivos da Casa Civil, "não basta ser ético; é necessário também parecer ético".
Reza a sabedoria popular que não é fácil "viver de aparências". A pessoa honesta e boa não se lembra de precisar parecer tal e qual. Sua bondade e honestidade transparecem, porque tal pessoa, como dizia Immanuel Kant, "brilha como uma jóia". No mesmo diapasão com que se cria a regra da "alta administração", o governo estabelece a regra para o "baixo clero" (o funcionalismo incorruptível): o silêncio. Noticiar crimes ou representar à autoridade pública tornam-se grave indisciplina, ainda que tanto não venha "escrito" de modo tão explícito. A regra é seguida espontaneamente pela mídia, que silencia o inconveniente, e publica a Verdade revelada pelo Poder.
Nessa ética imperial romana, a "tirania da comunicação" alia-se à tirania tecnológica que nos eliminou a todos do processo eleitoral, bem guardado em segredos que somente à mulher de César são acessíveis. A "tirania da comunicação" empresta seus dotes e maquiagens para que a mulher de César pareça honesta, inclusive calando quem ouse dizer algo que duvide dessa honestidade. O verdadeiro "risco-Brasil" está aqui, e não na bolsa de valores. A aliança é poderosa e consagra o neo-absolutismo. Assim como a legitimidade do rei estava em ser ungido por Deus, a do presidente em nossa democracia pós-moderna será ungida pela máquina de apurar, ou pelos descaminhos da "biblioteca de criptografia". O "sistema", em que se nos conclama a depositarmos fé, possui os mesmos atributos divinos. Será infalível, onipotente e onisciente; escreverá certo por linhas tortas; sua justiça será infinita e suas razões inescrutáveis.
Até que se "revele" o que se passa, de verdade, no interior do cavalo de Tróia pós-moderno. Revelação que provavelmente virá de um "aliado" arrependido, que não tenha recebido o seu quinhão no reparto da festa. E, então, até que a paciência dos enganados termine.
Passada a festa do pentacampeonato, comentaristas de ocasião tentarão comparar a encenação democrática da eleição de 2002 ao futebol. Mas aqui a alegria e o talento humano ainda funcionam como entrave à simulação de interesses econômicos e à politicagem. Nossa democracia não se parece com o futebol. Esse regime em que as pessoas governam seus iguais, em que é preciso treinar-se na difícil arte de "esquecer-se de si mesmo", é frágil por natureza e perde para a força da ditadura que se torna quase mais perfeita do que a mexicana, que já fora perfeita.
Ao titular da soberania só resta murmurar outro e mais um "protesto tímido", reconhecendo que a democracia perdeu a vida e a graça. Ou pedir que não nos façam crer que a festa é de verdade. Que pelo menos mantenham a sobriedade e não digam que o "pódio" da corrida eleitoral pertence ao candidato ungido pela soberania popular, quando a verdade se parece com uma corrida de Fórmula-1, onde símbolos nacionais como bandeiras e hinos já comparecem constrangidos e cobertos de vergonha.
(*) Procurador da República em Santa Catarina; mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e em Filosofia pela Graduate Faculty of Political and Social Sciences, New School for Social Research, Nova York (EUA)