Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A notícia como espetáculo

ENTREVISTA / JOSÉ ARBEX JR.

Luiz Egypto

Showrnalismo ? A notícia como espetáculo, José Arbex Jr., 300 pp. Editora Casa Amarela, São Paulo, 2001. E-mail <redacao@carosamigos.com.br>, telefone: (11) 3819-0130. Lançamento em 9/10/2001, no Teatro da Universidade Católica (Tuca), às 19h, em São Paulo.

Durante a Guerra do Golfo, em 1991, as forças armadas americanas lançaram 88.500 toneladas de bombas sobre Bagdá nos dois meses em que a capital iraquiana esteve submetida a bombardeios praticamente diários. As notícias sobre aquele conflito, contudo, davam conta de uma guerra limpa, moderna e asséptica, ostensivamente tecnológica ? algo como se os videogames tomassem em definitivo o lugar dos clássicos combates de trincheiras, dos entreveros entre esquadrões de carros blindados e das cargas de baioneta.

Mortes? Não, foi uma guerra sem mortes. A não ser, claro, a dos poucos heróis americanos que tombaram na defesa do Bem contra o Mal; e cujos os féretros, ao serem repatriados, recebiam comovente cobertura da TV, em rede nacional, e registros nos jornais do dia seguinte. E os 100 mil iraquianos mortos sob o fogo da operação Tempestade no Deserto? Sobre esses nenhuma linha, nenhuma imagem. Não passaram de meros coadjuvantes do grande espetáculo de notícias da guerra espetacular.

O livro Showrnalismo ? A notícia como espetáculo, de José Arbex Jr, analisa "como a mídia, no mundo contemporâneo, transforma tudo em espetáculo: eleições, catástrofes naturais, guerras, escândalos, histórias do cotidiano, crimes". O trabalho é fruto da tese de doutorado de Arbex defendida no Departamento de História da Universidade de São Paulo, em setembro de 2000. Ao rigor acadêmico o autor juntou sua experiência de correspondente da Folha de S.Paulo em Nova York e em Moscou, de repórter especial e editor da seção internacional do mesmo jornal, além da cancha adquirida na cobertura de episódios que marcaram o final do século 20 ? como a queda do Muro de Berlim e a Primavera de Pequim, para ficar em dois exemplos.

Na entrevista a seguir, Arbex comenta os principais eixos de seu livro. Na seqüência [clique em PRÓXIMO TEXTO], o prefácio assinado por João Pedro Stédile, da coordenação nacional do MST.

Duas perguntas em uma. Se o jornalismo transformou-se num show diário massificante, espetacular e ininterrupto, qual o papel reservado à platéia ? à cidadania? Embora a direção do espetáculo aceite apenas aplausos e pedidos de bis, onde reside a capacidade de intervenção do público nesse show de notícias e opiniões?

José Arbex Jr. ? Essa questão não se resolverá na relação direta entre "mídia" e "platéia", já que o problema consiste, justamente, em superar a passividade da "platéia" face à mídia (aquilo que Umberto Eco chama de "relação hipnótica"). Ora, isso só acontecerá mediante a ação política e social. Exemplo concreto: o MST. Nenhum movimento social tem sido tão caluniado, vilipendiado, achincalhado pela mídia. Entretanto, há 20 anos ele consegue ter o seu próprio jornal ? o Jornal Sem Terra ?, consegue fazer edições especiais com até 2 milhões de tiragem, tem uma bela revista, educa 100 mil crianças etc. Não é por acaso que João Pedro Stedile escreve o prefácio do livro. Acredito que o MST é o maior exemplo do problema e também da solução do problema.

Nas duas últimas décadas do século 20, a concentração de veículos e da produção de conteúdos para a mídia em número reduzido de grandes conglomerados empresariais deu-se no bojo de um processo de mundialização de mercados e de sistemas produtivos, sob a liderança "natural" dos países de ponta do capitalismo. No que respeita ao desempenho da mídia, acredita que esse quadro será capaz de desequilibrar irremediavelmente a pluralidade de visões e a noção de competição, motriz do próprio capitalismo?

J. A. Jr. ? Já desequilibrou, pelo menos desde a Guerra do Golfo, quando a mídia mostrou uma guerra sem mortes e hoje sabemos que morreram pelo menos 100 mil pessoas. Perto disso, Goebbles é um mero aprendiz de feiticeiro. Ou note o que está acontecendo agora, com o caso do World Trade Center. Uma infinidade de jornalistas idiotas, ou mal-intencionados, repetem a balela de que "foi rompido o tecido da civilização". Grande piada. E Hiroshima? E o Vietnã? E o Golfo? E o Sudão? Ou será que a "civilização" só está em causa quando as vítimas são louras de olhos azuis? Concordo com Noam Chomsky: fosse para valer a justiça internacional, todos os presidentes americanos deveriam estar na cadeia, por crimes contra a humanidade. Mas a mídia promove o esquecimento disso tudo.

Até que limite essa concentração não compromete a democracia e o exercício social do jogo democrático?

J. A. Jr. ? A grande mídia é hoje a maior inimiga da democracia, no Brasil, nos Estados Unidos e no mundo. Os exemplos são diários e abundantes: a guerra sem tréguas contra o MST, a histeria fabricada no caso do WTC, a Guerra do Golfo, a cobertura de Gênova (as manifestações reuniram mais de 300 mil após a morte do jovem Giuliano, mas ninguém viu), as eleições de 1989 no Brasil… Enfim, poderiam ser preenchidas páginas e páginas com coisas desse tipo. Só que as tecnologias de condicionamento do comportamento estão cada vez mais perigosas, sofisticadas e capazes de seduzir um público cada vez maior. É isso que eu chamo no meu livro de "Auschwitz cultural". Acredito que estamos vivendo na Auschwitz do imaginário, mas não nos damos conta disso ? o que é a maior prova de sua eficácia.

Você testemunhou, como repórter, alguns dos fatos que marcaram o mundo no final do século 20; e coordenou, como editor, a apresentação ao público de outros tantos. O que dizer a leitores e telespectadores sobre as diferenças entre a informação apurada in loco e o conteúdo que efetivamente é distribuído para o consumo da sociedade? Que garantias oferecer ao público quanto à correspondência entre a tradução publicada dos fatos e o que verdadeiramente ocorreu na chamada "vida real"?

J. A. Jr. ? Este é, precisamente, o centro do meu livro. Foi a grande questão que me fez escrevê-lo. É perturbador ouvir alguém dizer "eu conheço Nova York" apenas por ter visto a cidade em algum filme ou TV. Temos a impressão de que conhecemos "a" realidade quando dela só sabemos aquilo que alguém quis nos mostrar. Mas, ao mesmo tempo, ver as coisas pessoalmente tampouco significa "conhecer a realidade". Concluo, muito sinteticamente, que a realidade é uma construção social, e que "conhecer a realidade" exige, nesse sentido, interlocução com os outros, rompendo a passividade em relação à mídia. Novamente, a questão deve ser resolvida no plano da política.

A preponderância dos meios audivisuais na distribuição e no consumo da informação criou o que você chama de "império das imagens" ? a um só tempo fragmentário e pretensamente totalizador de uma visão de mundo que se quer hegemônica. Esse "império" apresenta fissuras através das quais é possível criar espaços de contra-informação? As mídias digitais, com baixo custo de produção e disseminação, são alternativas factíveis na exploração dessas fissuras?

J. A. Jr. ? Primeiro, temos que deixar bem claro que os instrumentos tecnológicos não têm uma realidade autônoma. Eu não aceito a visão algo apocalíptica e hecatômbica daqueles que dizem que a suposta "autonomia da tecnologia" liquidou o sujeito, o homem como alguém capaz de conhecer e transformar. Não acredito nisso. É óbvio que, sob o capitalismo, as forças produtivas (ciência e tecnologia) foram transformadas em forças destrutivas. Mas isso pode ser revertido por processos políticos e sociais. Enquadro a mídia na categoria das forças destrutivas que podem ser modificadas. Mas tampouco acho que temos que esperar que tudo mude para começar a produzir a "boa mídia". Existem espaços, já que a mídia não é monolítica, nem detém controle absoluto (que ela gostaria de deter) sobre os telespectadores / leitores. A mídia ainda cultiva a credibilidade, e por isso ela é obrigada a ceder espaço a jornalistas competentes, honestos, sérios. E os há! Não estão muito em moda, mas estão por aí. Em todos os grandes veículos há gente séria, felizmente. Fora isso, é claro que certas tecnologias "baratas" ajudam muito, como mostra, por exemplo, a própria experiência do Observatório.

    
    
                     

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