DOSSIÊ GUGU
Keila Jimenez e Niza Souza
[Copyright O Estado de S.Paulo, 28/9/03]
Ao misturar jornalismo e entretenimento, o Domingo Legal, do SBT, conseguiu até imagens que a Globo não teve durante a cobertura da rebelião em 29 presídios do Estado de São Paulo, em fevereiro de 2001. Já naquela época, Gugu conhecia bem o potencial que tragédias públicas ? que incluem morte e seqüestro de personalidades ? pode render no Ibope. Era a receita do "jornalismo de auditório". Amargando consecutivas derrotas em audiência este ano, o apresentador viu, no último dia 7, a mesma mistura levá-lo ao fundo do poço. Sem ter um fato jornalístico relevante para alavancar sua audiência, a produção do Domingo Legal inventou um: Gugu levou ao ar uma entrevista falsa com supostos membros da facção criminosa Primeiro Comando da Capital, o PCC. A farsa, que tem sido alvo da Justiça, da Câmara dos Deputados e de discussões de autoridades, coloca em xeque a ética dos programas que misturam ficção e realidade, informação e entretenimento.
Gugu não foi o único a apostar nesse formato. O Domingão do Faustão também tentou invadir esse terreno, sem grande êxito. O jornalista Alberto Luchetti, hoje diretor-geral da AllTV (canal de TV da internet), foi convocado a assumir a direção do Domingão do Faustão em 1998 justamente para isso: incrementar o jornalismo do programa.
Entre as coberturas jornalísticas realizadas pelo programa nesta época estão o seqüestro do irmão de Zezé Di Camargo, o templo da Igreja Universal que desabou em Osasco e uma mobilização pela paz no Rio. Mas Luchetti esbarrou num conflito de interesses interno: "A CGJ (Central Globo de Jornalismo) argumentava que o Faustão não podia furar o Fantástico com as notícias do dia; eu dizia a eles: ?Quem vai furar o Fantástico é o Gugu, não é o Fausto?", lembra Luchetti. "No meu tempo, o Gugu fazia tudo direitinho nesse terreno, era difícil competir", conta.
O diretor acabou deixando o Domingão, mas as tentativas de inserir "coberturas jornalísticas" no programa não cessaram. Houve uma temporada em que, para separar a imagem do apresentador de auditório da notícia, a Globo colocou o repórter Brito Júnior no palco: Faustão passava a palavra a ele e ele chamava as matérias. Não deu certo. Também faz parte dessa fase o quadro As Feras do Faustão. Eram três moças bem servidas fisicamente, com figurino insinuante. A primeira e única "reportagem" das chamadas Panteras foi invadir um prédio vizinho ao local onde estava preso o juiz Nicolau dos Santos Neto para, de lá, tentar fisgar alguma imagem de Lalau.
Para Luchetti, Gugu errou quando transformou a notícia em espetáculo. "Mas isso que estão fazendo com ele é uma sacanagem, principalmente se a gente lembrar do carnaval que a Globo fez com aquela Socorro Leite, numa entrevista ao Marcelo Rezende, no Fantástico, lembra? Ela dizia que o Maníaco do Parque tinha matado mais de 100 mulheres." Na época, em novembro de 1998, a Central Globo de Jornalismo lavou as mãos: a edição havia sido dirigida por Roberto Talma, profissional da área de shows, e o quadro era de responsabilidade da Central Globo de Produção. Valia como um teste para o então futuro Linha Direta.
A edição da entrevista foi inegavelmente sensacionalista, mas o entrevistado era de fato Francisco de Assis Pereira, que na época também foi alvo do programa de Gugu. De toda forma, os crimes cometidos por ele não justificam o aval da Globo para as premonições de uma fonte sem crédito científico. "E a pressão sobre o SBT é maior. É fácil bater no SBT porque a emissora não tem jornalismo, não representa perigo para ninguém. Vê se alguém tira programa da Globo do ar?", emenda Luchetti. Para o diretor, "o caso PCC-Gugu está, para o SBT, assim como o caso do Maníaco do Parque-Marcelo Rezende está para a Globo".
Nos outros canais, a tentativa de mixar ficção e realidade, e aí sob a falsa ? e mais nociva ? fachada de assistencialismo social continua rendendo cenas deploráveis. Em 1998, Ratinho acabou admitindo que montava farsas em seu programa no SBT. Desempregados transformavam-se em atores e interpretavam cônjujes traídos, por cachês de R$ 80 a R$ 150. Márcia Goldschmidt, da Band, também teve de se explicar no ar, este ano, por levar ao seu A Hora da Verdade discussões simuladas. Em uma das farsas que rendeu mais ibope,uma mulher dizia ter tido um caso de amor com o filho, sem saber que era sua mãe. No ano passado, João Kléber, da Rede TV!, foi acusado no ar por Claudete Troiano, da Record, de forjar o quadro Teste de Fidelidade e os bate-bocas de seu programa.
?O cerco vai apertar? ? Para o integrante da Comissão de Acompanhamento da Programação de TV, o professor de Comunicação Laurindo Leal Filho, nada justifica erros como o de Gugu, nem a guerra pela audiência."É a transformação de assuntos jornalísticos em espetáculos. Isso é, no mínimo, um desperdício de tempo e espaço. E não é apenas no programa de Gugu", diz ele. "Estes programas que minimizam a informação e dramatizam o espetáculo estão gerando produtos cada vez mais mórbidos."
O procurador da República Sérgio Suiama concorda. Diz que há mais programas do que se imagina que misturam entretenimento e jornalismo de forma imprudente, desrespeitando os direitos fundamentais das pessoas. "O problema não está só em programas de grande exposição. Outro dia vi um programa da Rede Vida conduzindo um debate sério em que o tema era: ?Homossexualismo tem cura??", fala Suiama. "Isso é preconceituoso, vai contra o direito das pessoas", continua. "Não é moralismo nem censura punir um erro como o que Gugu cometeu. O que tem de ser feito é criar punições decentes, direitos de respostas coletivos, ressarcimento de danos morais, essas coisas. O Judiciário tem de debater melhor esses casos, o cerco vai apertar em cima desses deslizes da TV."
Mix saudável ? Se a tentativa (falsa ou não) de mostrar "a vida como ela é" nos programas de auditório costuma causar danos, a mistura de ficção com realidade em novela vai muito bem.
Glória Perez que o diga. Já levou para suas tramas mães de filhos desaparecidos, depoimentos reais de dependentes químicos, campanha de doação de órgãos, entre outros assuntos "de carne e osso". Acostumada a retratar dramas da vida real em suas novelas, a autora não acredita que essa inclusão possa confundir o público. "Uma coisa é mostrar algo real dentro de uma novela e outra é um programa fazer da verdade uma ficção", acredita. Para a autora, o jornalismo não pode ter espaço para a ficção. "É totalmente diferente de quando abro a câmara da ficção para a realidade."
Expert no assunto, Manoel Carlos acredita que essa mistura em suas novelas ajuda o público a entender com mais clareza a realidade, já que a ficção é sempre crítica, com humor. "Não acredito que isso provoque confusão, já que o público brasileiro que assiste a novelas sabe acompanhar a história melhor do que qualquer outra pessoa", diz. "Quando resolvi matar a Fernanda (Vanessa Gerbelli) com uma bala perdida, pensei em uma pequena passeata de protesto, promovida por amigos da personagem. Teria umas 50 ou 60 pessoas. Diante dessa idéia, foram crescendo as adesões e resolvemos fazer uma passeata real a favor do desarmamento."
Para Maneco, colocar fatos reais em cena, além de fazer parte de seu estilo, dá crédito à história. "Estou levando as pessoas a refletirem sobre os assuntos mencionados, já que a ficção (repetindo Aldous Huxley) tem de fazer sentido, coisa que a realidade não precisa." (Colaborou Cristina Padiglione)