O GLOBO E O FMI
Gilson Caroni Filho (*)
Em cartaz há algumas semanas nas principais salas do país, O homem que não estava lá é uma lição de cinema. O mais novo filme dos irmãos Coen, rodado em preto e branco, é programa obrigatório para cinéfilos exigentes. Mescla melancolia, absurdo e tragicidade em estilo refinado e contundente.Vale a pena conferir.
Sem qualquer pretensão ficcional, o jornal O Globo estampava em sua primeira página do dia 22/4 uma notícia que deveria ter desdobramentos explosivos. O Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (Bird), no último dia da reunião semestral das duas instituições, alertavam o Brasil de que seu endividamento externo o deixava em situação extremamente vulnerável. Segundo o banco, somos responsáveis por 10% de toda a dívida mundial, tendo atingido US$ 237,9 bilhões em 2000, montante que equivale a 323% das exportações. "Segundo o Bird, quando esse índice supera os 220% a situação é muito grave."
Filme obrigatório
Ora, se levarmos em conta a dívida interna que, em oito anos de governo FHC, pulou de R$ 59 bilhões para R$ 615 bilhões, além das altas taxas de juros, a notícia de O Globo era a demonstração evidente de um cenário de terra arrasada. Crônica de uma quebradeira anunciada. Matéria de ampla repercussão a requerer análises de colunistas e acadêmicos. Seria interessante confrontar a opinião de diferentes correntes da teoria econômica. Ouvir as explanações de políticos da base governista e dos partidos de oposição. Em suma, aquecer o debate sobre os rumos do modelo macroeconômico.
O mesmo texto, assinado por José Meirelles Passos, correspondente do jornal em Washington, informava que "apenas o serviço da dívida consome o equivalente a 90,7% do que o país arrecada com as suas vendas externas". Ante a gravidade do quadro, aguardamos as edições seguintes dos principais jornais do eixo Rio-São Paulo. Nada. Nenhum colunista se pronunciou. A lei do silêncio imperou nas editorias de economia. De Míriam Leitão a Luís Nassif, a unanimidade dava conta de que a situação é gravíssima. Na Argentina.
Por tudo que denunciava, talvez não devêssemos estranhar os procedimentos ulteriores, mas a publicação em si. Lapso era pouco. A conhecida promiscuidade das Organizações Globo com o poder político que executa o receituário neoliberal tornava aquela página um "surto" inexplicável. Um erro editorial imperdoável. Mais que nunca era necessário exorcizar a informação disfuncional. Aquela deveria ser a "notícia que não estava lá". A mais nova produção da família Marinho, rodada em moderníssima tecnologia de impressão, deveria mesclar esquecimento, desinformação e uma aposta na cumplicidade do leitor.
Comprovação exemplar de que a lógica empresarial e os interesses da cidadania fazem um jogo de soma zero, "A notícia que não estava lá" é filmete de segunda que, por sua má qualidade, deve ser obrigatório a todo estudante de Jornalismo. Pelo menos daqueles que não pretendem fazer papel de coelho em redações que viraram cartola.
Mudança de cartaz
Mas, perguntará com razão o leitor, por que a farsa não ficou restrita a seu local de origem? Cremos que o último artigo de Alberto Dines neste Observatório, "Quem pariu a bolha das teles que a embale" [ver remissão abaixo], e a entrevista concedida por Daniel Herz a Luiz Egypto no mesmo número, "Quem são os donos da mídia no Brasil" [ver remissão abaixo], sejam muito elucidativos do que está em jogo. Mais que áulica, a imprensa se tornou sócia do modelo econômico. Denunciá-lo seria exercício público de desnudamento. Chegamos a um ponto de difícil retorno. Quem deveria fiscalizar os poderes tornou-se parte integrante da trama.
Cabem registros pontuais. Os colunistas de economia se deleitam com pequenos erros de direção. As críticas que endereçam às autoridades econômicas são restritas a pequenos pontos de gerenciamento. Coisas do tipo "Elevar as taxas de juro agora talvez tenha sido um erro" ou o "ajuste fiscal está sendo protelado em excesso". Os fundamentos são inquestionáveis e o modelo, axiomático. O Consenso de Washington ganhou, em alguns centros acadêmicos e em quase todas (exceção a uns poucos colaboradores da Folha de S.Paulo) as editorias de economia, fórum de razão absoluta. A coruja hegeliana virou uma galinha monetarista. A pergunta que se faz aos candidatos oposicionistas é se eles mexerão em algum ponto da atual política econômica. O pensamento único admite mudanças superestruturais, contanto que fique intacta a infra-estrutura desregulamentada.
O caráter antidemocrático do jornalismo brasileiro já levou o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos a afirmar que "se a oposição quiser vencer as eleições terá que fazê-lo apesar da imprensa". Talvez, as redações nem pensem nessa hipótese. E estejam preparadas para que, em outubro, a vitória da esquerda seja "A notícia que não estava lá ? Parte 2". Co-produção Marinho-Mesquita-Nascimento Brito. Participação minoritária da família Frias.
Em tempo: dias depois, na primeira página, o visitante de plantão do FMI disse que "a notícia que não estava lá" não era tão grave. Mas que precisamos tomar cuidado com a contaminação argentina. Outro cineasta. Desta vez o filme era Amnésia.
(*) Professor das Faculdades Integradas Hélio Alonso, Rio de Janeiro