SAI LIVRO, ENTRA NOTEBOOK
Deonísio da Silva (*)
Este artigo nasceu de duas fontes. A primeira: ouvindo o jornalista José Paulo de Andrade, no sábado (20/4), em seu programa matinal na Rádio Bandeirantes. Lá pelas tantas ele lembrou o episódio das obscuras perseguições, inclusive da própria Igreja, ao padre gaúcho Roberto Landell de Moura, a quem homenageei em meu romance Avante, Soldados: Para Trás, no capítulo "O padre telefonista". Vigário em Campinas, na segunda metade do século 19, fez da sacristia o seu laboratório de pesquisa sobre a propagação do som, da luz e da eletricidade. Chegou a patentear alguns de seus inventos nos EUA.
Ao chegar em casa, dei com a revista italiana Panorama, de 11 deste abril. A matéria de capa é dedicada a Bill Gates, entrevistado por ninguém menos do que Juan Luis Cebrían, fundador do jornal espanhol El País.
Bill Gates não diz uma única palavra sobre seus antecessores. Tudo gira em torno de si mesmo e de seus sonhos futurísticos. E da guerra dos inventos pouco sabemos. Porque também neste campo triunfa a versão dos vencedores.
O teclado em que batucamos mudou pouco desde que, em 1867, o norte-americano Christopher Latham Sholes, em companhia de Samuel Sooule e Carlos Glidden, montou a primeira máquina de escrever, fabricada em série a partir de 1873 pela família Remington, até então especializada em produzir aço temperado para canos de fuzil carregados pela culatra. Que bela metáfora: os Remington mudaram de armas! E a máquina substituiria o fuzil! E também neste particular há um outro brasileiro no meio, o padre Francisco João Azevedo, que em 1863 expôs na Feira Industrial do Rio de Janeiro a máquina de escrever que inventara.
Voltemos a Bill Gates. Ele diz que os livros vão morrer, claro, e que num futuro muito próximo vamos ler e escrever cada vez mais num notebook digital. Diz Gates que, excluídas as obras narrativas, que têm seu próprio fascínio, em dez anos todos os livros que conhecemos serão substituídos por livros eletrônicos. No caso das enciclopédias e outras obras de consulta, ele quase tem razão, pois já ocorreu em parte o que apregoa. Mas como variante, não como substituição.
Bill Gates é péssimo profeta, mas sabe ganhar dinheiro com sua Microsoft, ainda que cerca de 20 procuradores de diversos estados dos EUA vasculhem sua empresa, acusada de violar a concorrência. Seus méritos como self made man são indiscutíveis. A democratização dos computadores pessoais lhe deve muito. Mas quem já não blasfemou contra ele quando seu invento trava no meio de tarefas urgentes com a advertência "você executou uma operação ilegal e o programa será fechado"?
Não, dr. Gates, o livro, não. O livro é nosso e ninguém tasca. O senhor não terá o prazer de comandar nossa leitura e nos interromper porque teremos acabado de executar um programa ilegal e o nosso livro será fechado.
A entrevista é concluída com uma pergunta apocalíptica. Quem controlar as intervenções dos cidadãos na internet controlará o mundo? Gates responde que não: "Ao contrário; quando fornecemos um programa como o Word, não controlamos o que nele é escrito. E eu não obrigo ninguém a navegar num site em vez de outro".
Ainda não. Mas já há muita gente preocupada com poderes que vão se concentrando aos poucos nas mãos dele. A ponto de seu entrevistador ousar perguntar-lhe: "Você se considera o novo Grande Irmão?"
(*) Escritor e professor da UFSCar; seu livro mais recente é o romance Os Guerreiros do Campo