EIXO DO MAL
Paulo José Cunha (*)
Nunca me entendi bem com os números. Fórmulas, então, sempre me pareceram um domínio específico dos agraciados com um dom que o criador teve lá suas razões para não me conceder. Por isso, nas aulas de Química, sempre era o último a entender as explicações do padre Florêncio. Agora, quisesse ver aluno atento era só ele levar a turma ao laboratório. Aula prática! Aí, sim, tendo à minha frente substâncias que podia ver, tocar, cheirar, e a explicação ali ao lado, na hora, e todas as dúvidas se dissipavam. Lembro-me bem da aula sobre elementos radioativos, quando padre Florêncio nos mostrou um contador Geiger e, a partir dele, encaminhou a explicação para a natureza do urânio, com o qual se produz a paz de uma usina para geração de energia ou os megatons das bombas atômicas. No quadro-negro, diante de nossos olhos extasiados, revelou como funciona uma bomba de hidrogênio. "Teoricamente, então, padre, seria possível a qualquer um de nós, contando com os equipamentos e a tecnologia necessários, construir uma bomba atômica?", perguntei. "Não é assim tão simples. Existem certas informações que nem mesmo os cientistas revelam, por medida de segurança", respondeu o velho professor, lembrando os horrores provocados às cidades de Hiroshima e Nagasaki em 1945.
Outro dia soube que um irresponsável desses que pululam por aí distribuiu pela internet um diagrama de fabricação de uma bomba atômica, digamos, caseira. Mas, fora este fato que apenas confirma a regra, permanece a convicção de que certos segredos precisam continuar preservados, para o bem de todos e a felicidade geral do planeta. Como a técnica da clonagem humana. Ou a reprodução em laboratório de vírus letais. Ou a fabricação de armas químicas.
Entretanto, no dia-a-dia da televisão brasileira, onde os apresentadores gozam de absoluta e surpreendente liberdade, os crimes mais atrozes são diariamente dissecados, seus autores entrevistados para detalhar métodos e processos de atuação. O historiador Ronaldo Costa Couto há dias me sugere que aborde o tema, horrorizado com a desenvoltura com que os criminosos aparecem na telinha, nos horários em que a criançada está bem acordada, para explicar em detalhes a natureza de suas ações. Depois, é a vez de a polícia gozar sua fatia de estrelato, abrindo a caixa dos segredos e contando, tintim por tintim, como vêm se aperfeiçoando, por exemplo, os métodos usados pelos seqüestradores para garantir sua própria segurança no recebimento dos resgates, os processos para a manutenção dos cativeiros longe do alcance da polícia e de como devem ser feitos os contatos com a família para evitar o monitoramento das linhas telefônicas. Tudo com direito a atualizações periódicas, uma espécie de upgrade na forma de seqüestrar e assassinar.
Na verdade, o que os programas policiais vêm fazendo são aulas práticas de anatomia da violência. Um treinamento a partir de fatos reais, com pessoas reais que podem ser vistas, tocadas, cheiradas. Aula melhor eu não conheço. Em casa, o cidadão vocacionado para a atitude criminosa não precisa fazer mais do que, passivamente, aprender os métodos para se levantar do sofá e ir pra rua colocá-los em prática. Se antes esses programas davam uma espécie de aula expositiva, hoje o treinamento é todo prático, assegurando o conhecimento efetivo de todas as etapas das operações, com direito até a interagir com o apresentador, encaminhando perguntas pelo telefone, fax ou e-mail, a fim de esclarecer dúvidas com os agentes policiais ou, em alguns casos, com os próprios criminosos. Pelo andar da carruagem, em breve vamos ter a aplicação de testes via 0800.
Essa "pedagogia da violência" vem sempre mascarada pela indignação de paladinos da ordem e da decência, com o incitamento à justiça com as próprias mãos. Aquele cassetete do Ratinho e aquele "pau nele" do juiz que substituiu o Datena no Cidade Alerta são alguns exemplos que me vêm à memória, sem falar no Linha Direta, da Globo, que não passa da mesma droga, com uma coberturinha de chocolate pra disfarçar.
Nesse pé, estou começando a achar que organismos internacionais como a ONU e governos como o do papai Bush estão mesmo anacrônicos ao impedir a disseminação da tecnologia nuclear para fins bélicos, assim como os laboratórios do tio Saddam deveriam disponibilizar logo para o mundo inteiro a ciência da produção de armas químicas e biológicas. No curso de graduação a distância oferecido pela tevê aqui no Brasil até que estamos aproveitando bem as aulas. Portanto, o MEC não teria razão pra negar o reconhecimento ao doutorado que os mestres Bush e Saddam têm a nos oferecer.
(*) Jornalista, pesquisador, professor da professor da Faculdade de Comunicação da UnB. Este artigo é parte do projeto acadêmico "Telejornalismo em Close", coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para <pjcunha@unb.br>