TRAGÉDIAS DIÁRIAS
Vera Silva (*)
Discutir atos violentos é um desafio porque a manifestação da violência não se restringe ao momento de sua eclosão. Os atos violentos carregam a percepção da violência introjetada tanto por aquele que se comporta violentamente quanto por aquele que sofre direta ou indiretamente os efeitos do ato violento. Contudo, embora seja individual, a percepção da violência guarda um componente psicossocial que é o contexto em que foi gerada essa percepção individual.
Qualquer discussão sobre o comportamento da mídia na cobertura dos recentes atentados terroristas nos Estados Unidos teria, em nosso entender, de considerar a percepção da violência dos que dirigem, dos que fazem a mídia funcionar e dos que procuram as informações que a mídia fornece.
Em 1998, no Brasil, 67,9% dos óbitos entre jovens de 15 a 24 anos ocorreram por causas externas […], preferencialmente por homicídios (J. Waiselfisz, em "Mapa da violência II: os jovens do Brasil", Brasília: Unesco/Instituto Ayrton Senna/Ministério da Justiça, 2000). Em 2000, os jornais noticiaram que tivemos no Brasil 40 mil óbitos violentos. Quando saímos às ruas, vemos pessoas revirando latas de lixo para comer, corremos risco de vida (nossa probabilidade de morrer assassinado é, segundo a imprensa, acima de 20%, similar àquela dos países que vivem em guerra), vemos crianças cheirando cola etc. etc.
Show de crime
Ora, com uma exposição diária de violência de tal porte não é para admirar que a mídia brasileira e seus usuários pareçamos achar os americanos uns exagerados e até mesmo nos identificarmos com os que festejam os atentados. Os números da morte nos Estados Unidos parecem-nos talvez muito pequenos, e o espetáculo de um atentado ao vivo e a cores pode se confundir com mais um filme em mentes habituadas a conviver com a violência no cotidiano.
Nossas mentes, quer queiramos ou não, são violadas e confundidas pelo espetáculo diário do desprezo à vida humana e aos direitos fundamentais da pessoa a tal ponto que analisamos o ato violento como causa, e não como resultado da violência. O ressentimento de Terceiro Mundo, invejoso da independência, e por que não da auto-suficiência americana, faz-nos buscar identificação com os outros terceiro-mundistas que, como nós acreditamos, sofrem os efeitos da dominação econômica.
As coberturas, bem como as cartas dos leitores no jornal diário, em sua maioria, mostram a dualidade típica de quem sente que há alguma coisa além do que se vê nos episódios deste setembro e que desconfia ser ao mesmo tempo a bala e a bucha do canhão. Pedimos paz com o empenho de quem não entende a guerra entre os mundos e não sabe como conseguir a paz. Acendemos velas, fazemos cultos, encontros, mas a violência que nos cerca a cada momento fica mais incompreensível para nós.
Entendemos que a cobertura de nossa mídia reflete essa dualidade: ao mesmo tempo em que nos achamos iguais ao mundo desenvolvido, olhamos à nossa volta e nos percebemos não-desenvolvidos. Preferimos achar o rosto de Deus na fumaça, fazer abaixo-assinados pela paz, como os e-mails que tenho recebido nesta semana, do que refletir sobre a violência e arrancá-la de dentro de nós.
É preciso condenar os atos terroristas, identificar os terroristas e julgá-los, mas também é preciso erradicar o desrespeito ao mais simples direito humano que é ter comida para comer e casa para morar. As ações globais contra o terrorismo não podem se limitar ao grito de horror e à retaliação. O Brasil, como nação, deveria realmente voltar seus olhos para analisar o que ocorre no mundo e corrigir a violência de seu cotidiano. Caso contrário vamos usar a tragédia do outro para aliviar o peso de viver as nossas próprias tragédias diárias, como fazemos todas as noites, assistindo shows-de-crime na TV.
(*) Psicóloga