Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A pseudociência mercadológica

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JORNALISMO E NEGÓCIOS

Faz alguns anos que a totalidade da imprensa brasileira enveredou pelo caminho das decisões editoriais baseadas em razões de mercado. O discurso é, na aparência, claro: como quaisquer outras empresas, as jornalísticas devem responder à demanda do público. Assim, devem vender o produto que o leitor quer, e não o produto que o editor imagina ser o mais apropriado.

Tudo funcionaria da mesma forma que no caso de um fabricante de sorvetes, por exemplo. Se alguém da empresa imagina ser uma boa idéia produzir sorvetes de pimenta, não é por isso que se mobilizam a linha de produção e a área de vendas da empresa para produzi-los e distribuí-los. Vai-se primeiro ao mercado e se aquilata qual a probabilidade de o consumidor se interessar pelo novo sorvete.

Da mesma forma, jornais, revistas e telejornais não produziriam seu material com base em decisões puramente editoriais, mas as temperariam por recurso a tendências de mercado.

Aqui, contudo, cessa, na prática (mas não no discurso), o paralelo entre jornais e sorvetes. Neste último caso, a empresa produz exemplares do sorvete de pimenta e os submete a sessões de testes com uma amostra de consumidores extraída da população geral. Disso decorrem informações estatísticas que informam a empresa sobre regiões geográficas, faixas etárias, nível de renda do possível consumidor do sorvete de pimenta.

As empresas jornalísticas não fazem nada disso, ou nada próximo disso. As "razões de mercado" que me foram dado apreciar ao longo dos últimos anos apenas marginalmente se referiram a reações de leitores. No ambiente jornalístico, "razões de mercado" aparecem usualmente na forma de orientações vindas sem qualquer justificativa, inventadas por alguém da área de marketing. Ou, então, elas são aventadas por editores à guisa de argumentos para embasar decisões que, de outra forma, não conseguem justificar.

Em outras palavras, no mais das vezes desconfia-se que as famosas "razões de mercado" não passam de subterfúgio para evitar ter de apresentar motivos racionais para decisões na verdade arbitrárias.

Isso abrange desde o que é coberto e como é coberto até o próprio vocabulário e estrutura dos textos publicados. O diretor ou editor meramente afirma ao redator ou repórter coisas da seguinte natureza: "Ninguém vai entender isso; simplifique". Ou: "Quem se interessa por filosofia? Vamos publicar a matéria sobre histórias em quadrinhos".

Naturalmente, posso estar enganado, mas não há notícia de que algum veículo impresso tenha algum dia se dado ao trabalho de aquilatar a abrangência do universo vocabular/gramatical de seu público. A indigência que se verifica nesses veículos se deve totalmente aos próprios jornalistas. Eles é que concebem o público como incapaz, e, assim fazendo, tornam-no cada vez mais inepto. Eles é que tiram da cabeça que grupos funk, malhação em academias ou historietas gay são mais relevantes do que outros assuntos.

Sem dúvida as empresas jornalísticas fazem alguma pesquisa de mercado quando do lançamento de novos produtos. A partir daí, porém, o "mercado" de que tanto falam é o mercado interno das redações e dos departamentos de marketing, cuja opinião se baseia nas respostas a questionários perfunctórios respondidos por leitores, os quais (questionários ? êta língua portuguesa!) evitam cuidadosamente colocar em xeque os pressupostos editoriais da empresa.

O que uma pesquisa de mercado de verdade faz é procurar contestar uma conjectura que se faz sobre as tendências do consumidor, e não procurar a toda prova reforçar a linha oficial. Não é o que as pesquisas de jornal fazem. Por exemplo, caso o jornal dedique cinco páginas por dia àquilo que o público deve fazer para enfrentar o "apagão", então a pesquisa indaga: a cobertura está sendo boa, ruim, indiferente. Conforme as respostas, a redação recebe instruções correspondentes àquela cobertura. Mas não se pergunta: em vez dessa cobertura centrada em liqüidificadores e chuveiros, estaria o leitor interessado em saber, por exemplo, o que fazer para evitar que a mesma crise incida de novo no ano que vem? O que implicaria ir atrás do planejamento da matriz energética, coisa muito mais difícil de fazer do que entrevistar donas de casa.

(*) Secretário-geral da ONG Transparência Brasil <http://www.transparencia.org.br>; e-mail <cwabramo@uol.com.br>

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