LEITURAS DA ISTOÉ
Deonísio da Silva (*)
"O Brasil está na moda. Otimistas, os brasileiros redescobrem o amor pelo Brasil. De caso com o Brasil". Essas são as chamadas para os temas da revista IstoÉ que está nas bancas (22/3/03, número 1738).
Na capa, já sabemos quem está de caso com o Brasil. Ela, de novo. Luma de Oliveira, linda e exuberante, como sempre. É mais uma daquelas mulheres que contrariam a máxima amarga de Simone de Beuavoir, dando conta de que a idade não melhora nada. Filósofa e líder feminista surgida na década que mudou tudo ? ou quase tudo ?, os fabulosos anos 60 do século passado, Simone fez a cabeça da inteligência feminina que hoje está numa faixa etária próxima da que ora afeta a modelo e atriz que serve à revista para engrandecer certa idéia ufanista que o Brasil faz de si mesmo.
A mídia sopra as brasas do conde Afonso Celso de Assis Figueiredo e eis que ele ressurge proclamando, como o célebre personagem de Voltaire, que vivemos no melhor dos mundos e o melhor dos mundos é aqui. É mesmo. Onde mais essa gente tão favorecida viveria sem trabalhar? No alvorecer do século passado, Afonso Celso vendeu 300 mil exemplares de sua obra máxima Por que me ufano de meu país. Ninguém mais o superou. Aliás, o famoso escritor, conde papal e político brasileiro, usava muito certos adjetivos como pitoresca, como caracterizou São João Del Rei, a cidade que os Inconfidentes reservaram para capital do estado independente que fundariam em Minas Gerais nos finais do século 18: "Pitoresca localidade! Como nas grandes metrópoles européias, corta-a um rio pelo meio". E Itamar Franco ainda era um anjo de asinhas, nem pensava ser embaixador do Brasil em Roma.
Olhar de novilha
Ufanismo, coisa das mais perigosas! Pertenço à "faixa otária" que aprendeu a escrever em cadernos cujas capas apresentavam escoteiros marchando com bandeiras desfraldadas ? o poeta Affonso Romano de Sant?Anna fez belo poema sobre o tema e o problema ? e cantei o Hino Nacional sem saber o significado de nenhuma daquelas palavras, ignorando de quebra a sintaxe e a mensagem. Mas sabia que menino educado deveria cantar o Hino Nacional. Entender? Coisa para mais adiante! O conhecimento foi me esperar em outra idade e ela me trouxe certos cálices que não apenas nunca desejei, como também jamais esperei.
Passados aqueles anos, vi o governo Médici proclamar o "ame-o ou deixe-o". Na transição para a democracia, a doença de Tancredo Neves trancando o caminho, ouvimos Fafá de Belém cantar o Hino Nacional bem afinadinho e vimos tremular na Rede Globo a bandeira brasileira. Bonito o arranjo de imagem e som! Como o nosso hino.
Depois, Fernando Collor utilizou as cores nacionais e fez aquele carnaval contra o serviço público. A garotada usou as mesmas cores e ajudou nossa burguesia a expulsar o intruso do Palácio do Planalto. Intruso? Eleito por voto direito, sobretudo das camadas mais jovens, a mais indefesa diante da manipulação para levar ao poder ou dele derrubar quem contraria, não os interesses do povo ? esses podem ser sempre contrariados ?, mas os de quem financia as campanhas presidenciais.
Luma de Oliveira, a maior doadora individual da campanha que levou Lula à presidência ? deu declarados 27 mil reais ? deixa a capa da IstoÉ e migra para as páginas internas, onde está ainda mais bela em blusinha amarela, o biquíni com as cores nacionais. Não é só o nosso hino que é bonito. A pátria também. É só olhar para ela. Amazônia? O inferno é verde, como sabemos. E não há dinheiro para comprar aviões que cuidem daquelas fronteiras. A modelo e atriz exala confiança: "Tenham calma porque as mudanças vão acontecer, mas não imediatamente".
Para você também, querida e admirada Luma! Este é o segundo texto que escrevo sobre você, que já está merecendo um romance! E lembro aqui a anedota que dizem ter envolvido a escritora Agatha Christie e certa miss inglesa que, meio sem jeito, impondo à escritora um olhar de novilha ou potranca premiada em exposição, assim se expressou: "Estamos aqui, nós duas, eu representando a beleza, a senhora, a inteligência…" Foi aparteada pela colega: "Não se esqueça de que o tempo está a meu favor!"
Leis da moda
Ah, a História! Desde os primeiros séculos, extração e rapinagem da principal riqueza, a mão-de-obra gratuita, pegada a laço para, sob castigos e punições dos mais severos que a Humanidade já viu, obedecer aos dominadores ? bacamarte numa das mãos; evangelho na outra ? e inaugurar o modelo exportador. Os carros-chefes já foram o pau-brasil, o ouro, o açúcar, o café, o soja.
Mas aos trancos e barrancos o país, ainda assim, se moderniza. Daí é preciso, nos momentos de crise, flexibilizar a remuneração dos trabalhadores. Não é possível fazer isso quando a escumalha ? na jocosa definição de Elio Gaspari ? ainda está na ativa, organizada e cônscia de seus direitos. Então que se mexa com os inativos. Inativos, onde, caras-pálidas? Qual é o aposentado que, podendo, deixa de trabalhar? Quem vive com as gorjetas que são os salários post mortem, digo, depois de 35 anos de contribuição? Ah, sim, os happy few do serviço público. Que sejam identificados e chamados às falas, levados aos tribunais. Mas qual deles recebe algo parecido com o aposentadoria do presidente do Banco Central?
No país dos banqueiros, algo mudou. Foi-se o século 19 com seus direitos adquiridos. O escravo era o cartão de crédito de mais-valia: ninguém saía de casa sem ele. Aliás, nem ficava em casa sem ele. Nosso maior escritor cuidou do assunto com refinada ironia. Que seja nomeado, do contrário se pensará que é algum daqueles incensados pela mídia, autores dos manuais de auto-ajuda, os únicos livros de eficácia comprovada em todo o mundo: ajudaram muito a seus editores e autores, deixando os leitores, como sempre, na mão. Machado de Assis, tendo transitado pelos dois mundos, mulato que foi, esculpiu a maior vagabunda de toda a história da literatura brasileira.
Refiro-me à Dona Glória, sim, mãe de Bentinho, sogra de Capitu, que em Dom Casmurro sempre encontra alguém para fazer algo por ela, viúva, a pobrezinha, com apenas uma dúzia de casas alugadas no século 19! E com tantos escravos e servos a seu redor, para que cartão de crédito? Assim era melhor, a fatura nunca vinha e quando veio houve uma transição que antes livrou nossa elite das duas pontas mais incômodas da vida ? a infância (Lei do Ventre Livre) e a velhice (Lei do Sexagenário). Qualquer coisa que se faça hoje em reparação aos negros deve levar em conta nas compensações esse "passado que não abre a sua porta e não quer entender a nossa pena" (Cecília Meireles no seu esplêndido Romanceiro da Inconfidência). Mesmo porque um dos mais aclamados intelectuais brasileiros, homem de direito, membro da Academia Brasileira de Letras, mandou queimar a documentação relativa à "terrível nódoa" de nossa História! Os ímpios o veneram como modelo de escritor. Sua iniciais: Rui Barbosa.
A capa da revista IstoÉ não deixa dúvidas de que algo não mudou. A beleza e as vergonhas de nossas mais lindas índias, com tangas mais bonitinhas, continuam deslumbrando o olhar do outro!
Sim, o Brasil está na moda! E, segundo a mais atroz das leis da moda, está saindo de moda. Porque o caráter da moda justamente é esse seu lado tão efêmero. Assim consideradas as coisas, o Brasil está na moda desde o século 16. Pena que sejam ainda tão poucos os brasileiros que entrem em moda de tempos em tempos. Com efeito, são sempre os mesmos, não? Onde estão os outros? Espero que o novo governo ajude a ressurgi-los.
(*) Escritor e professor da UFSCar, escreve semanalmente neste espaço; seus livros mais recentes são A Vida Íntima das Palavras e o romance Os Guerreiros do Campo