Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A qualidade em marcha a ré

VER TV

Paulo José Cunha (*)

Meninos, eu vi! Faz tempo, mas eu vi a disputa pela audiência na televisão brasileira acontecer no plano estético, da cintura pra cima. Naquela época (parece que foi ontem) garantia a pole-position do ibope a emissora que oferecesse o produto mais bem elaborado, esteticamente mais bem produzido, de conteúdo mais denso, socialmente mais responsável – essas qualidades que hoje soam tão anacrônicas como colocar o Milton Nascimento pra cantar no horário nobre. Pois olhem: do alto deste meio século bem vivido eu juro que vi o negão todo serelepe no prime-time da Globo cantando Travessia num desses Fantásticos da vida. Vi a poesia de João Cabral de Melo Neto e de Carlos Drummond de Andrade desfilando pela telinha, na voz de Paulo Autran, Fernanda Montenegro, Sérgio Brito. Vi a adaptação d?O Grande Sertão com a bela Bruna Lombardi no papel de Diadorim. Vi o Jornal de Vanguarda do Fernando Barbosa Lima. Ah, vi foi coisa… Por estranho que possa parecer, isso aumentava a audiência. É sério! Tudo no tempo em que valia mais o que se situava da cintura pra cima, incluindo-se aí os dadivosos seios de Sandra Bréa, os neurônios engajados de Dias Gomes e a audácia de Daniel Filho.

Depois que os participantes da disputa arriaram as calças e o combate pela audiência passou a ocorrer ao nível da bunda, comecei a me desinteressar pela televisão de entretenimento, dedicando-me mais à de informação. Ainda assisto a tudo por dever de ofício. Na semana passada, depois de ler a áspera crítica "A mansão dos indigentes", de Eugênio Bucci, na Folha, fui espiar a Casa dos Artistas do SBT. Assisti. Desliguei. Já sei o que é. Não preciso ver mais. Este é o ponto: a televisão brasileira de sinal aberto se transformou nisto: uma coisa que a gente já viu e não precisa ver mais, porque já sabe o que é.

A conclusão vale pra novela, telejornal, programa infantil, tudo. A publicidade ? a excelente publicidade ? ainda é o que escapa da mesmice (devia ter um canal só de comerciais, ia dar o maior ibope). Curioso é que este caminho em marcha a ré é recente, começou há menos de uns 15 anos.

Meninos, eu vi: o último estertor do duelo estético (antes da chegada da disputa glúteo-pubiana) aconteceu numa série de dez programas chamada Chico & Caetano, sucesso na Globo na década de 80. Daniel Filho outro dia comentou que, hoje Chico & Caetano seria destroçado por um desses programas populares. E explicou que a culpa é da audiência, que não é mais das classes A e B. Quer dizer: nós é que pioramos. A tevê apenas foi atrás. A ponto de uma minissérie muito bem feita chamada Os Maias ter tido índices baixíssimos de audiência em fevereiro deste ano por… excesso de qualidade! (Nada para se espantar: já tivemos, na política, Aureliano Chaves, candidato a candidato à sucessão de Figueiredo, desaconselhado pelo general Golbery a prosseguir na disputa por ser excessivamente ético).

O pior disso tudo é que a gente sabe, aqui no Brasil, realizar disputas em que vale mais a qualidade do que a baixaria. O duelo estético entre os bois Caprichoso e Garantido, na grande festa de Parintins, no meio da Floresta Amazônica, é um deles. Ganha o mais bonito, o mais criativo, o mais autêntico. A baixaria lá ainda é defeito, acarreta perda de pontos. O carnaval carioca é outra disputa em que a estética e a ousadia, ainda que sujeitas aos critérios de comercialização turística, superam a apelação.

A televisão, ao contrário, enveredou pelo caminho mais fácil e mais rápido, e desce vertiginosamente ladeira abaixo. A TV Globo, que ainda resistiu durante algum tempo às atrações menos apelativas, sucumbiu definitivamente quando sentiu a mordida dos percentuais do ibope nas tardes de domingo, com gugus e shows dos milhões em seus calcanhares. No telejornalismo, o conteúdo paga tributo à popularização, despolitizando- se e nutrindo-se de fait divers (o que o povo quer ver) em vez da informação que interessa (o que o povo precisa ver). Chega a causar até um certo constrangimento ver uma figura da importância de Alexandre Garcia abrindo um bloco do mais influente telejornal latino-americano para anunciar a saída de uma participante do reality show No limite, e, depois, chamar uma matéria de quase 4 minutos sobre este acontecimento de tamanha relevância para a vida do país. Se a gente considerar que cada 30 segundos de publicidade no JN custam por volta de R$ 200 mil, gasta-se a bagatela de R$ 1 milhão para informar que fulaninho deixou a competição.

Sempre me ensinaram que informação de qualidade é cara. É mesmo.

Se fomos nós, o público, que pioramos, então que nos melhorem, ora. A televisão sabe como fazer isso. Já fez, e fez bem. E não vale o cinismo de Sílvio Santos ao dizer que educação é função exclusiva do Estado. Não é, principalmente num país em que o público passa mais tempo na frente da telinha do que na sala de aula. Se educação não fosse também tarefa da tevê os constituintes de 88 não teriam colocado no artigo 221, com todas as letras, que a televisão deve privilegiar os conteúdos voltados para a cultura e a educação.

Se a gente pelo menos saísse da marcha a ré para um ponto-morto já seria um adianto. Eugênio Bucci, diante de Casa dos Artistas ? a revista Amiga ao vivo ?, disse que sente saudades da liderança da Globo. Pois eu vou mais embaixo: ando com saudades do Flávio Cavalcante. Direitaço, mas sem baixaria.

(*) Jornalista, pesquisador, professor de Telejornalismo, diretor do Centro de Produção de Cinema e Televisão da Universidade de Brasília. Este artigo é parte do projeto acadêmico “Telejornalismo em Close”, coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para <upj@persocom.com.br>