FISK vs. FRIEDMAN
Carlos Eduardo Pestana Magalhães (*)
A quem servem os jornalistas? Essa é uma questão importante na cabeça de qualquer profissional de imprensa. As reportagens servem para narrar um fato, contar uma história o mais veridicamente possível, ouvindo todas as partes envolvidas no acontecimento e principalmente, não omitir nada. Regras simples e objetivas.
Claro que qualquer jornalista é um ser humano e portanto "imperfeito". Carrega consigo suas experiências de vida, seus valores, sua ideologia e isso tudo, de uma maneira ou outra, aparece nas reportagens. No entanto, é fundamental que se mantenha a ética, a responsabilidade de informar corretamente o fato, "doa a quem doer". Isso é utopia, é uma fantasia, é algo que se aprende na universidade e depois com o dia-a-dia se esquece? As pressões empresariais ? os veículos são empresas, antes de tudo ? e políticas ? governos, partidos, políticos ? "falam" mais alto?
Preocupações como estas fazem parte de qualquer atividade profissional. Umas sofrem mais, outras menos, mas para um jornalista digno deste nome é imprescindível saber lidar com estas pressões sem perder a dignidade, a ética, a responsabilidade da sua função social ? a informação é antes de tudo um bem social ? e ter claro o tempo todo que ele serve, antes de qualquer outra coisa, ao leitor, ao cidadão que precisa ser informado corretamente sobre o que acontece ao seu redor.
O britânico Robert Fisk, correspondente do jornal inglês Independent em Beirute, que está em Bagdá cobrindo a invasão, pode e deve ser considerado um exemplo de jornalista ético e responsável. Não é o único, claro, mas seu trabalho há anos na região e sua cobertura nesta guerra têm sido importantes para os leitores, não importa de que lado ele esteja neste conflito.
Espanto em Umm Qsar
Na matéria "Visitar hospital é como descer ao inferno", na Folha do dia 10 de abril, Fisk mostra todo o absurdo e o horror de uma guerra relatando o que viu no hospital Mártir Adnan Khairallah, na Bagdá ocupada por tropas ianques. "Os civis e soldados iraquianos trazidos para o hospital […] são o lado obscuro da vitória a da derrota. A prova final, assim como os mortos que são enterrados em poucas horas, de que essa guerra é a falência do espírito humano". Fisk questiona. "Essa guerra é por causa dos atentados de 11 de setembro? Pelos direitos humanos, pelas armas de destruição em massa?". Mais adiante, escreve sobre uma menina ferida. "O nome dela é Rawa Sabri e enquanto eu caminhava por esse lugar de terror os bombardeios americanos voltaram a atingir o rio Tigre, do lado de fora, trazendo o horror dos bombardeios que os feridos haviam sofrido apenas horas antes".
Ao fim da reportagem, Fisk lamenta. "Deixei o hospital e lembrei que o nome do local era uma homenagem a um ministro da Defesa de Saddam Hussein, morto em acidente de helicóptero. Pensei: mesmo nas últimas horas da batalha por Bagdá, as vítimas têm que morrer em um hospital cujo nome é de um assassino".
No mesmo jornal, no mesmo caderno, no mesmo dia, algumas páginas à frente, do sul do Iraque o jornalista ianque Thomas L. Friedman, do New York Times, procura mostrar no artigo "Ainda não é hora de aplaudir" a situação de penúria e sofrimento que os habitantes de Umm Qsar estão passando em função da destruição causada pela guerra. Começa o texto afirmando que "é difícil sorrir quando não há água. É difícil aplaudir quando você está assustado. É difícil dizer ?obrigado por me libertar? quando a libertação quer dizer que saqueadores roubaram tudo, de depósitos de grãos à escola local, de onde levaram até o quadro-negro".
Friedman informa que "Umm Qsar foi a primeira cidade libertada pelas forças da coalizão. Mas, após 20 dias de guerra, continua sem água corrente, segurança ou suprimento adequado de alimentos […] ninguém está aplaudindo de pé as tropas norte-americanas" como era esperado. Não há hostilidade, conta, mas "começamos [a invasão] esperando aplausos, e agora estamos satisfeitos por não haver hostilidade aberta", afirma, espantado. Curiosamente, informa que parte do problema se deve aos aliados ingleses visto que "aqui no sul […] as tropas britânicas ainda não completaram a conquista de Basra, o centro regional. Sem acesso livre a Basra, toda a economia do sul está paralisada".
Nós em primeiro lugar
Concluindo, afirma: "Os Estados Unidos dominaram o Iraque, e por isso agora os Estados Unidos possuem o Iraque, e detêm a responsabilidade primária por normalizá-lo. Se a água não fluir, se a comida não chegar, se a chuva não vier, se o Sol não brilhar, agora a culpa é dos Estados Unidos. É melhor que nos acostumemos a isso, e é melhor que ajamos direito, e é melhor que obtenhamos toda a ajuda que pudermos".
Fisk, em suas reportagens, mostra o que está acontecendo, traduz sofrimentos, deixa claro o horror de uma guerra, expõe suas dúvidas, medos, mas tem em mente que o seu objetivo é servir aos leitores, sejam eles ingleses, franceses, brasileiros, indianos.
Friedman serve à parte do povo norte-americano que apóia esta invasão e à atual administração dos EUA. Procura atender as expectativas, as exigências ? comerciais, ideológicas, políticas, empresariais etc. ? do patriotismo ianque nesta invasão. Como jornalista, sai-se muito bem como propagandista. Ou então os norte-americanos estão desenvolvendo uma nova forma de se fazer jornalismo. Nada de informação. É preciso estar junto, torcer para o mesmo time, não "remar contra a maré", não ter postura crítica ? talvez só um pouquinho. Somos NÓS que estamos nessa guerra. NÓS, o povo ianque, os soldados, o governo que precisamos nos defender de qualquer ataque da mídia estrangeira ou qualquer outra coisa. Os Estados Unidos acima de tudo!
Já vi e ouvi isso em algum lugar! E não deu certo.
Em suma, estamos presenciando um estilo de jornalismo totalmente contrário a tudo o que se aprende e se faz na mídia responsável, ética e profissional. Um jornalismo totalitário, contrário ao conceito de democracia, conceito este que "justificou" essa invasão ao Iraque, que respaldou o desrespeito às leis internacionais, à ONU, ao Conselho de Segurança e a todos países e pessoas que se opuseram a esta guerra.
Para o jornalismo ianque de hoje, o NÓS vem em primeiro lugar. Depois, os fatos.
(*) Jornalista