ESTRATÉGIA DE NEGÓCIO
Luciano Martins Costa (*)
O general chinês Sun-Tzu, citado como guru dos estrategistas em todo o mundo, foi um perdedor. Venceu todas as guerras para seu amo, o rei de Wu, Ho Lu, durante vinte anos, por volta do quinto século antes de Cristo. Cinco anos depois de sua morte, o reino de Wo Lu começou a sofrer uma sucessão de derrotas, até desaparecer por completo. Seus vizinhos não podiam admitir que sobrevivesse um só representante daquele reino que durante duas décadas havia impedido a civilização de se consolidar na região. Só assim a agricultura na região pôde se desenvolver e a China, conhecida como o Império do Centro, pôde se tornar uma grande nação.
O que isso tem a ver a crise da imprensa? Consulte qualquer gestor de qualquer empresa de comunicação: dez entre dez leram e adoraram os treze capítulos sobre estratégia de guerra escritos por Sun-Tzu, dez entre dez consideram o máximo de sofisticação citar a obra de Sun-Tzu como sinônimo de pensamento estratégico. Detalhe: primeiro Sun-Tzu escreveu o livro, transformando-se em uma celebridade de seu tempo. Depois se tornou um general famoso, contratado por Ho Lu justamente por suas teorias.
Sun Tzu vem ao caso porque a persistência de sua fama, renovada a cada citação, é um exemplo de temas, personagens e eventos que, ganhando a mídia, se renovam permanentemente sem que alguém se dê o trabalho de pensar um pouco mais a fundo seu significado. Enquanto vivíamos a era industrial e a mecânica era a metáfora perfeita para tudo, fazia sentido homenagear um general cujas vitórias foram a causa da destruição completa do reino a que serviu. Enxergava-se o mundo pelo detalhe, a História por cada capítulo.
A crise da imprensa tem esse sentido: desde que se resignou a ser uma instituição do seu tempo, a imprensa perdeu a capacidade de pensar estrategicamente. Sua tática de vencer no mercado, batalha por batalha, como Sun-Tzu, a impediu de enxergar a sociedade numa perspectiva de longo prazo. Os ganhos pontuais de audiência, assinantes, vendas em banca, agora cobram seu preço em infidelidade, retração de mercado, leitores mimados e despreparados para perceber o valor do conhecimento. O advento de uma tecnologia que provoca uma ruptura brusca e radical no modo como as pessoas se comunicam apenas veio agravar e tornar mais visível o problema.
Guerra perdida
Ao abdicar de seu papel primordial, que implica olhar o mundo para além dos seus dias, a imprensa vive, alimenta e radicaliza aquilo que se poderia chamar de o mal-estar da globalização. O mundo mediado com essa miopia não faz sentido, não permite uma visão de permanência da sociedade, desestimula a reflexão sobre o processo civilizatório em si e substitui o sentido de evolução pelo passo-a-passo dos indicadores, dos rankings, dos recordes.
No Brasil, a geração que levou a mídia aos maiores números de circulação e audiência de todos os tempos é também a responsável pela perda de qualidade, pela incapacidade de refletir e de propor ao público uma saída para fora desse círculo de desesperança, apatia e irresponsabilidade que tem como fundo o baticum do DJ do dia.
O texto de Roberto Kurz no caderno Mais! da Folha de S.Paulo (domingo, 6/7), diz muito mais sobre isso do que poderia ser discorrido por este observador, mas convém ressaltar seus comentários sobre o desempenho de intelectuais (jornalistas aqui incluídos) como observadores "platônicos" diante do agravamento das crises que acompanham o processo de globalização acelerada nas últimas décadas.
Ampliando-se o campo de observação do autor, ao se referir à geração que criou e conduziu a economia no nascedouro da era digital, chega-se facilmente à dourada periferia desse núcleo de poder que ditou valores e statements econômicos, sociais e culturais a partir dos anos 90 do século passado, e temos então a geração de jornalistas e gestores de mídia que fundiu e poliu o espelho desse mundo a que chamam pós-moderno. Esse é o "núcleo duro" da crise. Esses são os protagonistas dessa guerra perdida: depois deles, a mídia só poderá sobreviver se for reinventada radicalmente. Nas aldeias da periferia deste nosso reino de Wu, os excluídos esperam sua vez de derrubar os muros.
Fogos de artifício
Perdida a credibilidade, abandonada a responsabilidade pela visão evolutiva da sociedade, fica evidenciada a falência do modelo de negócio que durante três séculos sustentou a imprensa, mãe de todas as mídias. As famílias que dominaram a indústria nos últimos cem anos não souberam preparar seu futuro; os conglomerados de investidores ansiosos por poder político e reconhecimento social, que ambicionam os antigos impérios de comunicação, retardam ao máximo a última oferta, esperando fazer o arremate na bacia das almas.
Enquanto isso, o valor da informação se avilta, outros protagonistas invadem o campo de jogo e a tecnologia prepara novos golpes contra as empresas do núcleo tradicional. Quem observou o último lance de marketing do Unibanco já notou, por exemplo, que o negócio do setor financeiro está deixando rapidamente de ser a administração do dinheiro para se consolidar como uma indústria de serviços na qual a informação e o conhecimento substituem o cheque especial. Ao mesmo tempo em que isso acontece de forma acelerada, as empresas de mídia renegociam penosamente com os bancos as dívidas que resultam da gestão incauta de seu antigo patrimônio. De fato, o que é que essas empresas podem oferecer como garantia?
Os estudos de valor das marcas indicam claramente que tem havido um grande e mortal equívoco na análise desse valor. Veja-se, por exemplo, o que têm dito especialistas do mundo digital como o brasileiro Daniel Domeneghetti, da E-ConsultingCorp (www.e-consultingorp.com), ou os analistas da Baim & Company sobre marcas e fidelidade no mundo da comunicação instantânea. Pode-se concluir de suas análises, por exemplo, que o mais vendido jornal de economia do país vale menos por seu título do que pela percepção que têm seus leitores das escolhas que os jornalistas realizam todos os dias, e que se refletem em suas páginas. Quem garante que um investidor esperto e bem assessorado não esteja neste momento assediando a melhor inteligência desse jornal para criar um título novo, que carregue junto o verdadeiro valor da marca?
Essa é a questão principal, que nos remete de volta a Sun-Tzu: visto do seu tempo, o general era um vencedor. Visto ao longo dos séculos, era um obstáculo ao desenvolvimento da região onde viveu. Vistos do seu tempo, os triunfos da mídia nos últimos anos ofereciam razões para celebração. Quem se esquece do jornal de um milhão de exemplares diários? Olhados da perspectiva da História, são apenas rojões. Os jovens protagonistas desse hiato de tiragens gloriosas envelhecem rapidamente, presos à própria armadilha de perspectivas vazias que criaram para si mesmos ao conduzir a imprensa para o vácuo da insignificãncia social.
(*) Jornalista