9/11
Antônio Brasil (*)
Quem não assistiu 9/11 não sabe o que perdeu. Deve estar se chutando de raiva ao ler as críticas ou ouvir os comentários daqueles que tiveram o privilégio de ver o que há de melhor na TV: os bons documentários. Nem tudo na televisão é ruim. Talvez você ainda tenha que pagar caro por um canal por assinatura como o GNT, ficar acordado até às 4 horas da manhã de um dia no meio da semana assistindo à Globo ou desvendar os misteriosos segredos de como programar um videocassete para gravação. Mas valeu a pena.
Os adjetivos na crítica internacional descrevem o trabalho realizado pelos irmãos franceses Jules e Gideon Naudet como "histórico", "o melhor documentário de todos os tempos", "sortudos" ou simplesmente "brilhante". É claro que são todos meio exagerados. Mas é, sem dúvida, uma das produções mais importantes e representativas de uma longa e gloriosa história de documentários que registram com talento e competência o que há de melhor e de pior em nosso mundo.
Essa trajetória começou há mais de 100 anos, com outros irmãos igualmente franceses, os irmãos Lumiére. Ao inventarem o cinema, buscaram o registro de imagens simples sobre a realidade do cotidiano como a chegada de um trem à estação ou a saída de operários de uma fábrica. Hoje, os irmãos Naudet reinventaram os documentários. Apostaram no cotidiano e registraram a história. Mas é na técnica e na linguagem que estão os verdadeiros valores desse trabalho. Os irmãos Naudet não só deram ainda mais credibilidade ao videojornalismo investigativo como redescobriram importância do registro sonoro para o cinema do real.
O que há de mais importante e dramático em 9/11 não são as palavras nem as imagens. Ninguém jamais conseguirá esquecer a trilha sonora macabra, com um barulho ensurdecedor ao fundo, que insistia em alertar que corpos caiam numa verdadeira chuva muito perigosa para quem tentasse enfrentá-la. O som da morte. Mas não se assustem. O documentário não traz nenhuma imagem grotesca ou chocante. Os cineastas optaram por algo provavelmente ainda mais terrível: as imagens são preenchidas pela nossa própria imaginação.
Som real
Dentro de uma das torres ou fora delas, as imagens dos dois irmãos se buscam o tempo todo. Uma das câmeras tenta se aproximar da área do desastre. O irmão mais velho, Gideon, temia pela vida de Jules, o mais novo, cinegrafista ainda inexperiente que estava aprendendo a filmar. Com muita competência e talento, ele se tornaria uma "testemunha da história" ao mostrar as imagens exclusivas do choque do primeiro avião e do interior de uma das torres do WTC.
Em seus melhores momentos, as imagens do documentário são caóticas e confusas como a própria vida. Ninguém, tanto o aprendiz de cinegrafista como os bombeiros veteranos, sabe muito bem o que está acontecendo ou o que fazer. O medo está no olhar de todos. Pelas imagens, não se entende nem se tenta explicar nada. De repente, o som ao fundo cresce. Desta vez não são mais os corpos que caem, mas o mundo inteiro que está desabando. A torre ao lado começa a ruir, a poeira escurece tudo e a pequena luz da câmera do jovem Jules é que indica o único caminho para a fuga. Não se vê nada. A câmera de Gideon registra sua fuga desse inferno e testemunha, sempre "ligada", sua própria luta pela vida.
Enquanto isso seu irmão, do lado de fora e junto às torres, era surpreendido pela avalanche de escombros. Ambos ficaram surpresos por terem sobrevivido. A melhor "sonora" do documentário fica por conta de um policial que se irrita com a presença do jovem cinegrafista e sua câmera: "This is no fucking Disneyland". Não será preciso traduzir.
Explicar o inexplicável
Os irmão Naudet, com certeza, não queriam estar na Disneylândia, obedecer a ordem do policial ou as regras estabelecidas de como deve ser um bom documentário. Eles trabalham com uma nova forma de registrar a realidade que utiliza uma linguagem parecida com a própria vida. Divide-se uma célula ou uma equipe em duas ou quantas forem necessárias para que se crie um novo olhar, uma nova vida. Esse novo olhar é, por opção, solitário, autoral e curioso, mas não oculta as suas intenções ou a sua "câmera".
Videojornalismo investigativo, ao contrário das "câmeras ocultas", não obriga ninguém a mentir para comprovar uma denúncia ou registrar a História. Requer, sim, muito trabalho, tempo e dedicação. Ao acompanhar pacientemente, durante vários meses e sem que nada de importante acontecesse, a vida de Tony Benetatos, um jovem futuro bombeiro, os irmãos Naudet apostavam numa velha profissão (os bombeiros) e numa nova linguagem audiovisual. Com suas minúsculas câmeras digitais que vêem e registram tudo, parecem cumprir as promessas de outro grande pioneiro e teórico do cinema documentário, Dziga Vertov, que já profetizava uma nova realidade cinematográfica em seus manifestos nos "revolucionários" anos 1920: "Eu sou o cinema-olho, sou um olho mecânico, uma máquina para mostrar a você o mundo como só eu posso ver. Sou o cinema verdade".
Em tempos de documentários para TV que não se mostram mais nada, essas palavras nunca foram tão atuais, válidas e necessárias. E para aqueles que se interessam pelo cinema e pelo ensino, mas não temem o futuro nem as novas tecnologias, mais uma informação importante: os irmãos Naudet estudaram cinema na New York University e já foram premiados no New York Independent Film Festival em 2000. O filme se chamava Hope, gloves and redemption (Esperança, luvas e redenção) e retratava jovens lutadores de boxe de origem latina do Harlem, em Nova York. Ou seja, 9/11 não foi somente um golpe de mestre ou de sorte. Eles conhecem o passado, registram o presente e indicam o futuro. Também seria importante citar que o 9/11 dos irmãos Naudet foi exibido numa semana em que o nosso principal programa de documentários para TV, o velho Globo Repórter, estava mais preocupado em novamente ignorar o mundo "de verdade" e se dedicar a fenômenos considerados "paranormais" (sic). Pelo menos, deram um descanso nos bichinhos em extinção.
9/11 foi exibido com muito sucesso nos EUA, em março, pela rede CBS (TV aberta) e em cerca de 143 países. Está rendendo um dinheirão e muito prestígio aos seus produtores. E também contou com a presença de Robert De Niro. Ele faz uma "ponta", uma apresentação meio patética no início e no final do documentário de duas horas. Tenta explicar o inexplicável. Há quem goste ou considere necessário. Coisas do mercado.
(*) Cinegrafista, quer dizer, jornalista, coordenador do Laboratório de TV, professor de telejornalismo e doutorando em Ciência da Informação pelo convênio IBICT/UFRJ